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02/08/1551: Carta1Copiado no livro de registro “Cartas dos Padres da Comp. de Jesus sobre o Brasil…” cit. fl. 7. Pbl. em tradução italiana nos “Diversi Avisi Particolari”, p. 42-48 e em português na “Rev. do Inst. Hist.”, t. 6°, p . 95-103. que o padre Antônio Pires2Antônio Pires, nasceu em Castello Branco, bispado de Guarda e já era sacerdote quando eni 49 veiu com Nobrega ao Brasil. Partindo este para o sul (com Leonardo Nunes e Diogo Jacome), ficou em seu lugar o Padre Pires, até que, tornado, com elle foi a Pernambuco, onde ficou, até que á Bahia veiu dar conta, ao Bispo D. Pedro Fernandes Sardinha, da provisão que lhe despachara para em seu nome visitar a Capitania. Aquella substituição e esta honra, depõe com as suas cartas do valor do Padre Pires. Promoveu concerto das relações de D. Álvaro, filho do Governador d. Duarte da Costa, e do Bispo, a quem o outro pediu perdão. Em 60 visitou aldeias de indios com o Padre Luis da Grã. Em 61 foi a fundar a aldeia de Santa Cruz de Itaparica. Em 64 é mestre de noviços (carta LIV) no collegio da Bahia, porque diz Blasquez “padre antigo e velho e experimentado em qualquer ministério da Companhia”. Em 67 ainda fala nelle a Carta Annual. Delle disse o Padre Ambrosio Pires que era um grande varão e verdadeiro amador da virtude. “Trabalhou no Collegio da Bahia como carpinteiro e pedreiro, e mais tantos officios exerceu, disse elle mesmo que delles “poderia viver”. Palleceu super-intendente do Collegio da Bahia, vice-provincial, em março de 1572. escreveu do Brasil, da Capitania de Pernambuco, aos irmãos da Companhia
Padre Nobrega e Navarro. — Vicente Rodrigues. — Salvador Rodrigues. — Morte do indio D. João. •— Egreja para os convertidos. — O indio Simão. — Feiticeiros. — Execução de dois índios velhos. —’ Casa da Bahia. — Casamento de escravos. — Francisco Pires. — Affonso Braz [Afonso Brás]. — Simão Gonçalves . — Leonardo Nunes. — Diogo Jacome. — Manoel de Paiva. — Viagem a Pernambuco. — Estado da terra. — Falta de officiaes.
A GRAÇA e amor de Nosso Senhor seja sempre em nosso continuo favor e ajuda. Amen.
Por algumas cartas que o anno passado de 1550 vos escrevemos, vos demos larga informação destas partes do Brasil, e de algumas cousas que Nosso Senhor por seus servos, que pola santa obediência dessas partes foram mandados, quiz obrar, os quaes ao presente estão repartidos por diversas capitanias desta costa, e por suas cartas sabereis o que o Senhor por cada um delles obra. Somente vos quero eu dar conta do que na Bahia succedeu depois da partida dos derradeiros navios, e também desta capitania de Pernambuco, onde haverá poucos dias que o padre Nobrega e eu somos chegados.
Primeiramente sabereis que o padre Nobrega [Manuel da Nóbrega] chegou á Bahia de visitar e correr as capitanias, e logo ordenou que o padre Navarro [João de Azpilcueta Navarro] fosse ao Porto Seguro a trasladar as orações e sermões3Vd. nota 1; cf. nota 21. Portanto, mandado a Porto Seguro para aprender com interpretes que ahi havia, um achou muito bom, com quem fez as traducções e aprendeu tão bem a lingua que, naquella carta (a IV) de 51, conta como em visita a uma aldeia de 150 fogos “fiz ajuntar os moços e fiz-lhes a doutrina em sua própria lingua”. O Padre Pires na presente carta diz que o Padre Navarro, lhes faliava “em sua lingua”: em agosto de 49 dizia Nobrega ” j á sabe a lingua delles” (Cartas, loc cit.). em lingua da terra com alguns interpretes que para isso havia mui bons, as quaes trasladou mui bem, e é muito para dar graças a Nosso Senhor vel-o pregar muita parte do Velho Testamento e Novo, e outros sermões do Juizo, Inferno, Gloria, e t c , em que a todos nós leva a vantagem; e nisto temos todos muita falta em carecer da lingua e não saber declarar aos índios o que queremos, por falta de interpretes que o saibam explicar e dizer como desejamos.
Muitos dos Gentios pedem a água do Bautismo; mas o padre Nobrega ha ordenado que primeiro lhes façam os catecismos e exorcismos até que conheçamos nelles firmeza, e que de todo o coração creiam em Christo, e também que primeiro emendem seus maus costumes.
São taes os bautizados que perseveram, que é muito para dar graças ao Senhor, porque, ainda que dos seus são deshonrados e vituperados, não deixam de perseverar em bons costumes. O povo gentio ao principio nos dava pouco credito e lhe parecia que lhe mentiamos e o enganávamos, porque os clérigos e também os leigos ministros de Satanaz, que ao principio a esta terra vieram, lhes pregavam e fadavam por interesse de seus abomináveis resgates.
Agora que começam a conhecer a verdade e o continuo amor com que os Padres os tratam e conversam, e o trabalho que pela salvação de suas almas recebem, vão cahindo na conta e querem ser christãos com muito mór vontade e mais firme intenção que ao principio. Também Nosso Senhor ha mostrado cousas, e mostra cada dia, por onde se vão desenganando a nos não ter na conta em que antes nos tinham.
Os christãos que permanecem são tanto nossos que contra seus naturaes irmãos pelejaram por nos defender, e estão tão sujeitos que não têm conta com pães nem parentes. Sabem mui bem as orações, e têm melhor conta com os domingos e festas que outros muitos christãos. Em nossa casa se disciplinam todas as sextas-feiras e alguns dos novamente convertidos se vêm a disciplinar com grandes desejos. Em a procissão da Somana Santa se disciplinaram alguns, assim dos nossos como dos novos convertidos, e daqui em diante se começaram a confessar com o padre Navarro em sua lingua, porque já ha muitos que o querem e desejam. Estes hão de ser um fundamento grande para todos os outros se converterem. Já começam a ir polas ald.êas com os Padres pregando a Fé, e desenganando os seus dos maus costumes em que vivem.
Muitas cousas em particular poderá escrever, que por minha grande frieza e por não cuidar que havia eu de ser o escriptor as nãov escrevo, assim por não as ter na memória, como polas não estimar por falta de caridade.
Grande é cá a inveja que estes Gentios têm a estes novamente convertidos, porque vêm quão favorecidos são do Governador e de outras principaes pessoas, e si quizessemos abrir a porta ao Bautismo, quasi todos se viriam a bautizar; o que não fazemos sinão aos que conhecemos ser aptos para isso, e que vêm com devação e com contricção dos maus costumes em que se hão criado, e também para que não tornem a retroceder, mas que fiquem contentes e firmes.
Muito mais fruto se poderá fazer si houvera obreiros, mas o padre Navarro é só o que tem cuidado de tudo isto, porque Vicente Rodrigues teve quartans4E ‘ uma das primeiras, “notificações da malária, ou impaludismo, na Colônia. A primeira daria Nobrega (Cart., p . 59), logo em 49, doente o Padre Pires. De impaludismo, febres recahidas, veiu a fallecer Diogo Jacome, no Espirito-Santo. Foi e é a mais espalhada endemia nacional, e, com “-isso, pertinaz. A tenacidade dessas febres passara em esconjuro desde os Ro-„ manos: “Quartana te teneatl”, dando no portuguez, recolhido por Gil Vicente: “Quanão mal, nunca maleitas!”. Será, até hoje, a mais mortifera das endemias nacionaes: novidade velha de séculos. muito tempo, e Salvador Rodrigues5O Padre Salvador Boãrigues veiu na segunda Missão em 50, e foi o primeiro jesuita aqui falleeido. Era de grande simplicidade e singular obediência . Conta delle Franco, citando Anchieta, que ao partir para S. Vicente, Nobrega o deixara doente e lhe ordenara não morresse até a sua tornada. Estando muito mal, parecia-lhe não poder morrer contra aquelle mandado, sendo preciso que o Padre Luis da Grã o desobrigasse daquella obediência, para em bôa paz se finar. Conta ainda Anchieta, com piedoso humorismo quo era Rõiz devotissimo da Virgem, mas na sua falia cerrada “Ascenção” e “Assumpção”, tudo na sua boca era um: “Assumpção”. Pois apesar de muitos dias em cama, recebidos os sacramentos, expirou dando meia noite do dia da Assumpção de 1553. (Pranco, Imag. da Virt. de Coimbra, 215). também, des que veiu até agora, teve a mesma doença e outras más disposições; ao padre Nobrega, bastam-lhe seus contínuos sermões e doutrina, com outros negócios espirituaes que nunca entre os Christãos faltam. Eu tinha cargo da casa, e nisto me occupei até agora, por não ser para mais. Todos os outros Padres estão repartidos por diversas partes, mas são tão poucos que não bastam para todas: assim que muita é a messe que se perde por falta de segadores.
Entre outras cousas vos quero contar uma de um Principal desta terra,, que ha alguns dias que pedia a água do Bautismo, e porque tinha duas mulheres não lh’a queriamos dar, ainda que sabiamos que uma dellas não tinha sinão para se servir della. Um dia com grande pressa e efficacia pediu o Bautismo, o qual bautizou o padre Navarro, e dahi a 7 ou 8 dias adoeceu de câmara6E ‘ a dysenteria, de qualquer causa, quasi sempre infectuosa, que produz hemorragias “câmaras de sangue”., e se ia consumindo até que conheceu que havia de morrer, e, duas noites antes que morresse, mandou chamar o padre Navarro para o acompanhar e ensinar como havia de morrer, e dizia-lhe que lhe nomeasse muitas vezes o nome de Jesus e de Santa Maria, e elle também dizia com o Padre estes santos nomes até perder a falia, e, antes que a perdesse, vestiu uma roupa que tinha e mandou aos seus que o enterrassem com ella em sagrado, como era costume dos Christãos, e deu o espirito a Deus estando o padre Navarro dizendo missa por elle, polo qual não se pôde achar á sua morte.
Disse uma sua irmã, que se achou presente á sua morte, ao padre Navarro, que lhe dissera o defunto antes que perdesse a falia: Irmã, não vedes f E ella lhe respondeu que não via nada, e tornando-lhe a perguntar o mesmo, ella lhe respondeu da mesma maneira, até que elle com grande alegria lhe disse: Vejo, Irmã minha, os bichos folgar na terra, e em os Céos grandes alegrias e prazeres.
Ficai em bora que me quero ir7Este moribundo, que o Padre Navarro ajudava a morrer, tinha já a incapacidade nossa de “objeetivar” o Paraiso, ao em vez dos outros índios, dos quaes falava Nobrega: “mui apegados com as cousas sensuaes. Muitas vezes me perguntam se Deus tem cabeça e corpo e mulher, e se come e de que se veste e outras cousas semelhantes.” (Cartas, 72)., e assim acabou. Enterramol-o em uma egreja que tinhamos feita para os novamente convertidos: alguns feiticeiros o quizeram estrovar; mas não puderam, e deitaram fama que o Santo Bautismo o matara, não conhecendo que Nosso Senhor lhe fizera mui grande mercê em o tirar de antre elles, e o levar a sua Santa Gloria, como se deve crer.
Este nos tem dado entrada nesta terra. Em sua maneira de viver não era fora da lei natural e da razão, o que em mui poucos Gentios tenho visto nesta terra.
Ficou um seu irmão por Principal, o qual tem por nome Simão, e o morto D. João, com o qual mettemos cá em vergonha os maus christãos, porque é mui virtuoso e fora dos costumes dos outros, e também sua mulher e filhos, os quaes nos quer entregar para os ensinarmos, e por falta de casas e mantimento não o podemos fazer.
Já agora, quando estão doentes alguns dos novos christãos, ou quando morrem, chamam os Padres para que roguem a Deus por elles e para que estêem á sua morte, e os enterrem depois de mortos. Mas Satanaz que nesta terra tanto reina, ordenou e ensinou aos feiticeiros muitas mentiras e enganos para impedir o bem das almas, dizendo que com a doutrina que lhes ensinávamos os trazíamos á morte. E si algum adoecia, diziam-lhe que tinha anzóes no corpo, facas ou tesouras, que lhe causavam aquella dôr; e fingiam que lh’as tiravam do corpo com suas feitiçarias.
Estas e outras muitas manhas sóe usar em esta sua geração, em a qual tanto ha que reina, temendo ser despojado de sua tyrannia.
Uma cousa vos quero contar, que é de grande admiração, da grande justiça e misericórdia do Senhor. Junto desta Bahia 6 ou 7 léguas, em uma ilha, está uma geração que já teve guerra com estes da Bahia, e agora estavam em paz. Acertou a segunda oitava de Paschoa de ir lá um barco com quatro homens brancos a resgatar sem licença do Governador, e não iam ainda confessados e, segundo se diz, iam a peccar com algumas Negras com as quaes estavam concertados, e sahindo em terra, determinaram os Negros de os matar em vingança de uns irmãos seus que os Christãos haviam salteado e morto, havia já tempo. Conhecendo os Christãos sua determinação, e querendo fugir, antes que chegassem ao barco os mataram, e depois os comeram. Alguns dos nossos se juntaram, e foram contra elles, e prenderam dous velhos principaes e uma mulher, e os entregaram ao Governador, promettendo-lhe que prenderiam mais si pudessem, os quaes dous velhos eram tios dos que mataram os christãos. Aos quaes faliou o padre Nobrega com um interprete, que, já que haviam de morrer, que morressem christãos, e persuadiu-os com razões, e levou-lhes ali dos novamente convertidos para os tirar do seu engano e convencel-os.
Q,uiz o Senhor que com grande vontade quizeram e foram bautizados, e sempre com o nome de Jesu na bocca, olhando para os Céos, acabaram as vidas á bocca de uma bombarda, os quaes eu bem creio que são salvos, tanto quanto temo que os Christãos que os seus mataram sejam condemnados por suas obras e vida damnada, si em seu fim Christo Nosso Senhor não os soccorreu. Depois tornaram os habitadores daquella ilha, que haviam fugido de medo, a povoal-a por causa dos muitos mantimentos que nella ha, e trouxeram muita gente do certão em sua ajuda, contra os Brancos e seus ajudadores, pelo qual conveiu ao Governador mandar quasi toda a gente da terra, e ficou elle com mui poucos, guardando a cidade, e foi com esta gente o padre Nobrega com uma cruz na mão, que dava grande consolação aos Christãos e espanto e terror aos índios, o qual confessasse os feridos, ajudasse os mortos, si os houvesse. Mas quiz Nosso Senhor ajudar os Christãos, porque, começando os novamente convertidos, que iam na dianteira, de andar ás frechadas com os índios, e vendo que os nossos se chegavam muito a elles; desemparando a aldêa, fugiram para os matos, a qual foi queimada com outra da mesma casta, que estava em outra ilha perto desta, a qual também desamparam fugindo, e mataram dous delles. Em outra aldêa se achou muito mantimento, que os homens pobres da armada trouxeram. Estão agora os Negros tão medrosos, que qualquer jugo de bem viver que lhes -fôr posto o aceitarão, ainda que seja por temor e medo dos Brancos.
Em a Bahia se deu principio a uma casa, em que se recolham e ensinem meninos dos Gentios novamente convertidos, a qual se começou com alguns mistiços da terra, e com alguns dos orphãos que de lá vieram em o galeão. E ‘ cousa que fizemos por nossas mãos, ainda que seja de pouca dura, e tomamos terra para mantimento dos meninos.
Já começam os filhos dos Gentios a fugir de seus pães, e virse para nós, e por mais que lhes fazem não os podem apartar da conversação dos outros meninos; e é tanto, que á nossa partida da Bahia chegou um escalavrado e sem comer todo um dia, fugindo de seu pae para nós. Cantam todos uma missa cada dia, e occupam-se com outras cousas similhantes. Agora se ordenam cantares em esta lingua, os quaes cantam8Cf. Simão de Vasconcellos (Op. cit., 1. II, n° 118), falando do Seminário da Bahia, confraria de Meninos índios, a cargo do Padre Salvador Rodrigues: “Outras vezes iam em procissão da cidade até suas próprias aldeias, levando sua cruz levantada e cantando as mesmas devoções em lingua brasilica, com summo gosto e alegria dos pães, que de nenhuma cousa mais se prezavam. Nenhuma outra satisfaz tanto a esta gente como a doçura do canto: nella põe a felicidade humana. Chegou a ser opinião de Nobrega que era um dos meios, eom que podia converter-se a gentilidade do Brasil a doce harmonia do canto e por esta causa, ordenou-se-lhe puzessem em solfa as orações e documentos mais necessários de nossa santa fé; porque á volta da suavidade do canto entrasse em suas almas a intelligencia das cousas dos Céu.” os Mamalucos polas aldêas com os outros, e já tivéramos a casa cheia, si os pudéramos sustentar e tivéramos onde os aposentar.
Daqui a poucos mezes haverá mantimentos para se poderem tomar mais, e por isso repartimos alguns dos moços orphãos pelas outras capitanias. Em algumas destas aldêas é tão grande o temor e reverencia que têm aos Padres, que não ousam abertamente comer carne humana, de maneira que estão estes Gentios, principalmente os da Bahia, apparelhados para se fazer nelles grande fructo. Mas estamos cá tão poucos e tão repartidos, e as necessidades são tantas entre os Christãos, ás quaes somos mais obrigados a acudir, que não sei como soffreis, carissimos Irmãos, estar tanto tempo nessa casa, havendo cá tantas necessidades que esperam por vós.
Mui grande fructo se tem visto nesta costa entre os Christãos.
Evitaram-se grandes peceados, fizeram-se muitos casamentos a serviço de Deus, e alguns foram com mulheres da terra, de que resulta grande louvor a Christo Nosso Senhor, e será um grande principio de se acrescentar a terra e a Santa Fé Catholica. De maneira que está este porto tão reformado, que não sinto terra povoada de gente tão mal acostumada em peceados, como esta, que possa estar tão reformada em bons costumes e virtudes. O Governador, por suas virtudes, nos ajuda muito, e em tudo favorece nossa causa. Os escravos9Os escravos, se. os indios escravizados pelos reinóes, que os Jesuitas acharam na terra, e continuaram injustamente a adquirir por cruéis entradas e criminosos resgates. Cf. Gandavo (Hist., cap. X I I I ) : “os (os Portugueses)… salteavam quantos queriam e faziam-lhes (aos índios) muitos agravos, sem ninguém lhes ir á mão. Mas já agora não ha esta desordem na terra, nem regastes, como soia. Porque despois que os Padres viram a sem razam que com elles se usava e o pouco serviço de Deus que daqui se seguia, proveram neste negocio e vedaram como digo, muitos saltos que faziam os mesmos Portuguezes por esta costa, os quaes encarregavam muito suas consciências com cativarem muitos indios contra direito e moverem-lhes guerras injustas.” aqui viviam gentilicamente, como antes, quando eram gentios, o faziam em suas terras. Tem-se feito nelles grande fruito, porque sabem já as orações, e ensinam-os a viver virtuosamente.
Trabalhamos por pôr um costume nesta terra, de casar os escravos com as escravas á porta da egreja. Casaram-se muitos, e casar-se-iam muitos mais, si acabassem de crer seus senhores que não ficam forros. Com a vinda do Bispo esperamos que se fará nisto muito proveito, e se remediará todo o demais, porque ha muitas fazendas que têm muitos escravos e escravas.
Francisco Pires está em Porto Seguro, e com elle esteve até agora Vicente Rodrigues e veiu agora a communicar com o padre Nobrega em esta costa algumas cousas, em a qual adoeceu, e não pôde mais tornar. Fez uma ermida ali, da qual a gente é mui visitada de romarias. Diz-se por toda a costa que uma fonte, que se abriu depois da fundação da ermida, dá saúde aos enfermos.
Francisco Pires tem cuidado de fazer a doutrina aos escravos e de visitar algumas aldêas dos Gentios, que estão perto d’aqui, das quaes tem tomado alguns meninos para os ensinar. Está vos aguardando só com grandes desejos, caríssimos Irmãos — tanquam agnus in médio luporum.
Affonso Braz e Simão Gonçalves10Vd. sobre Affonso Braz a nota 37. Simão ou Simeão Gonçalves foi admittido no Brasil, pois delle já fala Nobrega em 50 (Cartas, p. 75). Anchieta, (Carta de maio-set. 54) fala delle também. Finalmente a Hist. dos Coll.ão Brasil, cit., p . 127 que falleceu em Piratininga em Julho de 72, portanto com mais de 20 annos de Companhia e não apenas “dezisiete”, como affirma essa “Historia”. estão ao presente em o Espírito Santo; têm começada uma casa, em a qual temos esperança que se criarão muitos moços dos Gentios, porque é terra mais abastada e melhor de toda esta costa, segundo dizem todos.
Ha alli muitos escravos, em os quaes se faz muito proveito. Leonardo Nunes e Diogo Jacome estão em S. Vicente. Têm também feita uma grande casa, em que se hão de recolher e ensinar todos os meninos dos Gentios novamente baptisados. Dilatouse sua ida aos Carijós por muitos respeitos, principalmente por não haver quem pudesse sustentar esta casa, e reger os meninas della.
O padre Manuel de Paiva11O Padre Manoel de Paiva, nasceu em Aguada, bispado de Coimbra e entrou para a Companhia em 48, vindo para o-Brasil, na segunda Missão Jesuitiea em 50. Estava nos Ilhéus quando veiu chamado a tomar conta do collegio da Bahia por ter Nobrega de ir a Pernambuco. Esteve em quasi todas as casas da costa. Mandado a S. Vicente ahi assistiu á fundação do collegio de Piratininga, de que foi reitor, chefiando 13 ou 14 padres e irmãos, entre elles Joseph de Anchieta. Este diz delle, citado por Franco, que foi “homem muito chão e cândido em sua conversação, guardando sempre uma perpetua paz”. Tão obediente que descendo um monte com Nobrega mandou o padre que se deitasse por elle a rodar, assim logo o fez, até mandado parar. Tão piedoso que chegou a pregar um sermão da Paixão de joelhos “não sei quantas horas”. Intrépido ao perigo corporal. Incansável á conversão dos indios e a doutrinação dos brancos. Foi um grande missionário. Falleceu no Espirito-Santo a 21 de dezembro de 84. chegou, pouco ha, da capitania dos Ilheos, e deixa aquelle povo com muita saudade de si. Está agora na Bahia e tem cuidado da casa.
O padre Nobrega e eu partimos, haverá 15 dias ou 20, para esta Capitania de Pernambuco, onde ha 6 ou 7 dias que somos chegados com assaz fortuna, porque estivemos muitas vezes quasi perdidos; mas quiz Nosso Senhor por sua misericórdia livrar-nos de tantos perigos. Aqui fomos mui bem recebidos deste povo, principalmente dos Capitães, que são homens virtuosos e amigos de Deus; e porque esta terra é mui povoada de muita gente, ha também nella muitos peceados; mas ainda que isto assi seja, parece-me que a gente está dócil e bem inclinada. Ha também aqui muitos escravos, e os Gentios desta terra parece que são os melhores de todos os das outras partes, porque conversaram sempre com melhor gente que de todas as outras capitanias. Temos esperança que se ha de fazer muito fruito.
O padre Nobrega prega todos os domingos e dias santos, e ás tardes faz uma pratica á maneira de sermão: ás sextas-feiras faz outra aos disciplinantes, e é mui acceito a todos.
Foi cousa para dar muitas graças a Nosso Senhor vêr este domingo passado uma egreja mui grande cheia de escravos, que vinham á doutrina, que seriam até mil, afora os que estão em as fazendas que o são muitos, porque ha fazenda que tem duzentos escravos .
O padre Nobrega me tem feito cá pregador, pois que vós, Irmãos meus, tardais tanto. Trouxe as orações e alguns sermões escritos nesta lingua. Espero agora de me exercitar nelles.
Logo que aqui chegámos, começaram muitos a se apartar de suas mancebas, e de outros peceados: parece-me que foi por medo, por lhes parecer que traziamos poder para os castigar. Queira Nosso Senhor que não as tornem a recolher.
Chamam-nos os Negros e escravos vigairos temerosos, porque os Christãos desta capitania por este nome de vigairo nos chamavam .
Os moradores desta capitania se dão grande pressa a nos ordenar casa e andam escolhendo sitio. Estão mui apparelhados para nos ajudar em todo o que nos fôr necessário para o serviço de Deus.
Casam-se muitos, o que d’antes não se fazia, porque queriam antes estar amancebados com suas escravas e com outras Negras forras. Ha nesta terra um costume, que os mais dos homens não recebem o Santo Sacramento, porque têm as Negras com quem estão amancebados, em tanto que ha homem que ha 20 annos que não commungou, e confessam-nos, e absolvem-nos; o que tudo se faz ás nossas custas, pois agora é nosso officio remedial-os.
O mór trabalho que agora temos é que haverá em esta povoação algumas 50 Negras, ou mais, afora outras que estão polas fazendas, as quaes se trouxeram das aldêas pólos Brancos, para as ter por mancebas. Elles as faziam logo christãs, por que o peccado não fosse tão grande. Não sabemos dar a isto talho, porque, si lh’as tirarmos, hão-se de tornar ás aldêas e assi faz-se injuria ao Sacramento do Bautismo; e si lh’as não tirarmos, estarão uns e outros em peccado mortal. Tenho esperança que, por meio de vossas orações, nos ha Nosso Senhor de ensinar o que havemos de fazer. Elias andam tão devotas principalmente as forras, que, quanto ao que mostram, si lhes pudéssemos ordenar alguma maneira de vida, facilmente as apartariamos do peccado.
Ha entre ellas uma muito antiga entre os Brancos, á qual todas as outras obedecem, porque anda com uma vara na mão, e tem cuidado de as ajuntar á doutrina. Esta se levantou uma madrugada, duas ou três horas antes do dia, e com grandes vozes pregoava nossa vinda, animando as outras, dizendo que já o dia era chegado, que até aqui sempre tiveram noite, que sahissem de seus males e peceados, e fossem boas christãs, dizendo mal de seus costumes, e louvando os nossos. Muitas destas se nos vêm á casa, e se assentam de giolhos, dizendo com muita lastima que até qui, assi ellas como seus filhos, foram salvages; que por amor de Deus a ensinemos e doutrinemos.
Umas cartas tivemos cá vossas, escritas do mez de Setembro, e outras poucas que vieram por via da capitania dos Ilheos, as quaes trouxeram dous dós meninos orphãos que mandaram de Lisboa. Agora se esperava na Bahia pelos navios de El-Rei Nosso Senhor, que não eram ainda chegados. Parece-nos que trarão mui cartas e novas vossas, polas quaes não podemos aguardar, por não perder a embarcação, e por isso não respondemos a ellas.
Nesta terra, pela falta que ha de officiaes, a necessidade nos faz aprender todos os officios; porque de mim vos digo que pelos officios que nesta terra tenho aprendido poderia já viver.
Christo Nosso Senhor nos faça bem aprender e obrar o officio da perfeição, para que nossos trabalhos e serviços lhe sejam acceitos; e para isto, Irmãos meus em Christo, nunca vos esqueçais de ter continua memória de nós em vossos sacrifícios e orações.
Desta capitania de Pernambuco, a 2 de Agosto de 1551.