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História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador (1627)
Frei Vicente do Salvador, OFM, nascido Vicente Rodrigues Palha (Matuim, Salvador, circa 1564 — Salvador, circa 1636-1639) foi um religioso franciscano brasileiro. Sua vida é pobremente conhecida e sua fama repousa sobre dois escritos, Crônica da Custódia do Brasil, e principalmente a História do Brasil (1627), valiosos relatos históricos e corográficos sobre a vasta colônia portuguesa na América em seus primeiros tempos. Este legado documental, cuja importância a crítica reconhece em consenso, lhe valeu os epítetos de Pai da Historiografia brasileira, ou Heródoto brasileiro. Sua vida como religioso também foi relevante, recebendo várias atribuições de responsabilidade e fundando o convento de Santo Antônio do Rio de Janeiro.
Fragmentos
Fragmento do Livro Primeiro, Capítulo Quinto, intitulado Das minas de metais e pedras preciosas do Brasil:
Outra entrada fez um Antônio Dias Adorno, da Bahia, em que também achou de passagem muitas sortes de pedras preciosas, de que trouxe algumas mostras, e por tais foram julgadas dos lapidarios.
De crystal sabemos em certo haver uma serra na capitania do Espirito Santo em que estão mettidas muitas esmeraldas, de qüe Marcos de Azeredo levou as mostras a el-rei e, feito exame por seu mandado, disseram os lapidarios que aquellas eram da superfície e estavam tostadas do sol, mas que, si cavassem ao fundo, as achariam claras e finissimas. Pelo que el-rei lhe fez mercê do habito de Cliristo e de dous mil cruzados pera que tornasse a ellas, os quaes se não derarn, e o homem era velho e morreu sem haver mais até agora quem lá tornasse.
Também ha minas de cobre, ferro e salitre, mas, si pouco trabalham pelas de ouro e pedras preciosas, muito menos fazen^ por esfoutras.
Não ponho culpa a el-rei, assim porque sei que nesta matéria lhe hão dado alguns alvitres falsos, e diz Aristóteles que é pena dos que mente^ não lhes darem credito quando falam verdade, como também porque não basta mandar el-rei si os ministros não obedecem, como se viu no das esmeraldas de Marcos de Azeredo.
Fragmento do Livro Segundo, Capitulo Terceiro, intitulado Da terra e capitania que el-rei doou a Pedro de Góes:
Em companhia de Pero Lopes de Sousa andou por esta costa do Brasil Pedro de Góes, fidalgo honrado, muito cavalleiro, e pela afeição que tomou á terra pediu a el-rei D. João que lhe desse nella uma capitania, e assim lhe fez mercê de cincoenta léguas de terra ao longo da costa ou as que se achassem donde acabassem as de Martim Affonso de Sousa até que entestasse com as de Vasco Fernandes Coutinho. Da qual capitania foi tomar posse com uma boa frota, que fez em Portugal á sua custa, bem fornecida de gente e todo o necessário, e no rio chamado Parahiba, que está em vinte e um graus e dous terços, se fortificou e fez uma povoação, em que esteve bem os primeiros dous annos, e depois se lhe levantou o gentio e o teve em guerra cinco ou seis annos, fazendo ás vezes pazes que logo quebravam, tanto que foi forçado a despejar, a terra e passar-se com toda a gente pera a capitania do Espirito-Santo, em embarcações que pera isso lhe mandou Vasco Fernandes Coutinho, donde ficou com toda a sua fazenda gastada, e muitos mil cruzados de um Martim Ferreira, que com elle armara pera fazerem muitos engenhos de assucar.
No districto desta terra e capitania cai a terra dos Aitacazes, que é toda baixa e alagada, onde estes gentios vivem mais á maneira de homens marinhos que terrestres. E assim nunca se puderam conquistar, posto que a isso foram algumas vezes do Espirito-Santo e Rio de Janeiro, porque, quando se ha de vir ás mãos com elles, mettemse dentro das lagoas, onde não ha entral-o a pé nem a cavallo. São grandes búzios e nadadores e a braços tomam o peixe ainda que sejam tubarões, pera os quaífe levam em uma mão um páu de palmo pouco mais ou menos, que lhes mettem na bocca direito e, como o tubarão fique com a bocca aberta, que a não pode cerrar com o páu, com a outra mão lhe tiram por ella as entranhas, e com ellas a vida, e o levam perai a terra, não tanto pera os comerem como pera dos dentes fazerem as pontas das suas frechas, que são peçonhentas e mortíferas, e pera provarem forças e ligeireza, como também dizem que as provam com os veados nas campinas, tomando-os a cosso, e ainda com os tigres e onças e outros feros animaes.
Fragmento do Livro Segundo, Capitulo Quarto, intitulado Da terra e capitania do Espirito Santo que el-rei doou a Vasco Fernandes Coutinho:
Não teve menos trabalhos com a sua capitania Vasco Fernandes Coutinho, a quem el-rei, pelos muitos serviços que lhe havia feito na índia, lhe fez mercê de cincoenta léguas de terra por costa, o qual a foi conquistar e povoar com uma grande frota á sua custa, levando comsigo a D. Jorge de Menezes, o de Maluco, e D. Simão de Castello Branco e outros fidalgos, com os quaes, avistando primeiro a serra de mestre Álvaro, que é grande, alta e redonda, foi entrar no rio do Espirito Santo, o qual está em vinte graus; onde logo á entrada do rio, da banda do Sul, começou a edificar a villa da Victoria, que agora se chama a villa velha em respeito da outra villa do Espirito Santo que depois se edificou uma légua mais dentro do rio, em a ilha de Duarte de Lemos, por temor do gentio.
E, como o espirito de Vasco Fernandes era grande, deixando ordenados quatro engenhos de assucar, se tornou pera o reino a aviar-se pera ir pelo sertão a conquistar minas de ouro e prata de que tinha novas, deixando por seu locotenente D. Jorge de Menezes, ao qual logo os gentios fizeram tão cruel guerra que lhe queimaram os engenhos e fazendas, e a elle mataram ás frechadas, sem lhe valer ser tão grande capitão e que na índia, Maluco e outras partes tinha feitas muitas cavallarias.
O mesmo fizeram a D. Simão de Castello Branco, que lhe succedeu na capitania, e a puzeram em tal cerco e aperto que, não podendo os moradores delia resistir-lhes, se passaram pera outras e, tornando-se Vasco Fernandes Coutinho do reino pera a sua, por mais que trabalhou o possível pela remediar e vingar do gentio, não foi em sua mão, por estar sem gente e munições de guerra, e o gentio pelas victorias passadas muito soberbo: antes viveu muitos annos mui afrontado delles em aquella ilha, ate que depois pouco a pouco reformou as duas ditas villas.
Mas emfim, gastados muitos mil cruzados que trouxe da índia, e muito patrimônio que tinha em Portugal, acabou tão pobremente que chegou a lhe darem de comer por amor de Deus, e não sei si teve um lençol seu em que o amortalhassem.
Seu filho, do mesmo nome, também com muita pobreza viveu e morreu na mesma capitania. E não se attribua isto á maldade da terra, que é antes uma das melhores do Brasil, porque dá muito bom assucar e algodão, gado vaccum, e tanto mantimento, frutas e legumes, pescado e mariscos que lhe chamava o mesmo Vasco Fernandes o meu villão farto.
Dá também muitas arvores de balsamo de que as mulheres, misturando-o com a casca das mesmas arvores pizadas, fazem muita contaria que se manda pera o reino e pera outras partes. Mas o que fez mal a estes senhores, depois das guerras, foi não seguirem o descobrimento das minas de ouro e prata, como determinavam. E parece que herdaram delles este descuido seus successores, pois, descobrindo-se depois na mesma capitania uma serra de cristal e esmeraldas, de que tenho feito menção em o capitulo quinto do primeiro livro nem disso se trata, nem de fortificar-se a terra pera defender-se dos corsários, sendo que, por ser o rio estreito, se podéra fortalecer com facilidade. Antes, levando-o pelo espiritual, me disse Francisco de Aguiar Coutinho, senhor delia, que dissera a Sua Magestade que tinha uma fortaleza na barra da sua capitania que lha defendia, e não havia mister mais, e que esta era a ermida de Nossa Senhora da Penha que alli está, aonde do mosteiro do nosso padre S. Francisco, que temos na villa do Espirito-Santo, vão dous frades todos os sabbados a dizer missa, e a temos a nossa conta. E na verdade a dita ermida se pode contar por uma das maravilhas do mundo, considerando-se o sitio, porque está sobre um monte alto um penedo que é outro monte, a cujo cume se sobe por cincoenta e cinco degraus lavrados no mesmo penedo, e em cima tem um plano em que está a igreja e capella, (pie é de abobeda, e ainda fica ao redor por onde anda a procissão, cercado de peitoril de parede, donde se não pode olhar pera baixo sem que fuja o lume dos olhos.
Nesta ermida esteve antigamente por ermitão um frade leigo da nossa ordem, asturiano, chamado frei Pedro, de mui santa vida, como se confirmou em sua morte, a qual conheceu alguns dias antes, e se andou despedindo das pessoas devotas, dizendo que, feita a festa de Nossa Senhora, havia de morrer. E assim succedeu, e o acharam morto de geolhos e com as mãos levantadas como quanuo orava, e na tresladação de seus ossos desta igreja pera o nosso convento fez muitos milagres, e poucos enfermos os tocam com devoção que não sarem logo, principalmente de febres, como tudo consta do instrumento de testemunhas que está no archivo do convento.
Fragmento do Livro Terceiro, Capitulo Sétimo, intitulado De como mandou o governador seu filho Fernão de Sá socorrer a Vasco Fernandes Coutinho e ô matou lá o gentio:
Neste tempo estava Vasco Fernandes Coutinho em grande aperto posto pelo gentio na sua capitania do Espirito Santo*, e mandou á Bahia requerer ao governador Men de Sá que o soccorresse,’ o que o governador logo fez, mandando cinco embarcações bem providas de gente, e por capitão-mór delia a seu filho Fernão de Sá em a galé São Simão. Os outros capitães eram Diogo Morim, o velho, e Paulo Dias Adorno.
Chegaram todos a Porto-Seguro, onde lhes disseram que no rio chamado Cricaré estava o mais do gentio que fazia guerra a Vasco Fernandes, e que ahi deviam de os ir buscar, offerecendo-se pera ir com elles, como de feito foram, o capitão Diogo Alvares e Gaspar Barbosa em seus caravelões.
E navegaram pelo dito rio arriba quatro dias, até que viram as cercas do gentio que estavam juntas da água, onde, pondo as proas em terra por estar a maré cheia, por ellas desembarcaram e saltaram fora os soldados, tornando-se os marinheiros com os navios ao meio do rio por não ficarem em secco na vasante, è os bombardeiros pera de lá fazerem seus tiros. Começou-se a travar a briga, na qual logo em o primeiro encontro puzeram o gentio em desbarate, mas, tornando-se a ajuntar e reformar, voltou com tanta força que forçou aos nossos a desordenarem e misturarem com os inimigos, de maneira que os tiros que tiravam das embarcações não só os não defendiam, mas antes os feriam e matavam e, retirando-se pera se acolher a ellas, estavam tanto ao pego que os mais foram a nado, e os feridos em algumas jangadas, entre os quaes foram os dous capitães Adorno e Morim, ficando o capitão-mór com o seu alferes Joanne Monge na retaguarda, onde, crescendo o gentio que de outras aldeias vinha de soccorro, os mataram ás frechadas.
E assim acabou Fernão de Sá, depois de haver feito grandes cousas em armas contra a multidão destes bárbaros, assim neste combate, como em outros em que se achou na Bahia é em outras partes. Os mais se partiram para o Espirito Santo, onde Vasco Fernandes os recebeu com muito pesar, sabendo do seu destroço e da morte de Fernão de Sá, e os mandou com a mais gente que poude ajuntar a dar em outros gentios que o tinham quasi em cerco, os quaes lho fizerem levantar, posto que com morte de alguns dos nossos, entre os quaes Bernardo Pimentel, o velho, que mataram ao entrar de uma casa.
Feito isto se foram a S. Vicente, e dahi á Bahia, onde o governador os não quiz ver, sabendo como haviam deixado matar seu filho; e quando elles não tiveram esta culpa, nem por isso a devemos dar ao pai em fazer extremos pela morte de tal filho.
Fragmento do Livro Quarto, Capitulo Trigésimo Sexto, intitulado Do que fez o governador nas minas:
Despedido o governador [D. Francisco de Sousa] desta Bahia, em poucos dias chegou á capitania do Espirito-Santo onde, por lhe dizerem que havia metaes na serra de mestre Álvaro e cm outras partes, as tentou e mandou cavar e fazer ensaio, de que se tirou alguma prata. Também mandou que fossem ás esmeraldas, a (pie já da Bahia havia mandado por Diogo Martins Cão e as tinha descobertas. Fez uniforte pequeno de pedra e cal em que pôz duas peças de artilharia pera defender a entrada da villa, e feito isto se partiu pera o Rio de Janeiro, donde foi recebido do capitão-mór, que então era Francisco de Mendonça, e do povo todo com muito applauso, por ser parte onde nunca vão os governadores geraes.
Fragmento do Livro Quarto, Capitulo Quadragésimo Segundo, intitulado Do que aconteceu a uma náu flamenga que por mercancia ia d capitania do Espirito Santo carregar de páu brasil:
Costumavam ir ao Brasil urcas flamengas despachadas e fretadas em Lisboa, Porto e Vianna, com fazendas da sua terra e de mercadores portuguezes, pera levarem assucar. Entre as quaes foi uma á capitania do Espirito-Santo e pediu o capitão delia ao superior da casa dos padres da Companhia, que alli tem doutrina de indios a seu cargo, que lhe mandassem fazer por elles uma carga de páu brasil na aldeia de Reritiba, onde ha muito e tem bom porto, e o anno seguinte tornaria a buscal-o e lhes trariam a paga em ornamentos pera a igreja ou no que quizessem.
Deu o padre conta disto ao procurador, que alli estava, dos contratadores do páu e com o seu beneplácito se fez na dita aldeia; porém, sendo el-rei informado que por essas urcas serem mais fortes e artilhadas, todos queriam carregar antes nellas e cessava a navegação dos navios portugueses e quando os quizesse pera armadas não os teria, nem homens que soubessem a arte de navegar, parecendo-lhe bem esta razão a el-rei e outras que o moveriam escreveu ao governador Diogo Botelho e aos mais capitães não consentissem mais em suas capitanias entrar navio algum de estrangeiros por via de mercancia nem por outra alguma, mas os mettessem no fundo e perseguissem como a inimigos.
Depois desta prohibição chegou o flamengo á barra do Espirito-Santo, e não achou já o padre superior, por ser mudado pera o Rio de Janeiro, sinão outro, que lhe não falou a propósito. Foi-se á aldeia onde o páiL estava junto e, porque também os padres que lá estavam lho não deixaram carregar, tomou quatro índios e se foi ao Cabo-Frio desembarcar, e dalli por terra disfarçado a falar com o padre no collegio do Rio de Janeiro, o qual lhe disse que não tratasse disso, porque el-rei o tinha prohibido, antes se tornasse com toda a’ cautela porque, si Martim de Sá, governador do Rio, o sabia,- lhe custaria a vida.
Não se tornou com tanto segredo o flamengo que Martim de Sá o não soubesse, e assim mandou logo cinco canoas grandes com muitos homens brancos e índios frecheiros e seu tio Manuel Correia por capitão, o qual chegou ao Cabo-Frio a tempo que os achou em terra com alguns flamengos, carregando a lancha de pau brasil que alli estava feito, e lha tomou e prendeu a todos, voltando outra vez pera ó Rio de Janeiro, onde não achou o sobrinho, que era ido por terra ao mesmo Cabo-Frio e, quando lá chegou e não achou as canoas pera ir tomar a náu que estava ao pego, se tornou com muita cólera, e aprestou brevemente quatro navios que estavam á carga, e sahiu em busca da náu dos flamengos, que já andava á vela, mandou-lhes falar pelo seu mesmo capitão, que levava preso, que não atirassem e se deixassem abalroar, e elles assim o fizeram mettidos todos debaixo da xareta, sem apparecer algum.
Houve portuguezes que a quizeram desenxarcear ou cortar-lhes os mastos; respondeu Martim de Sá que a náu era já sua e não a queria sem mastos e enxarcea. Era isto já de noite e os nossos passavam por cima da xareta como por sua casa, quando os flamengos e índios que com elles iam começaram a pical-os debaixo com os piques, e da proa e popa dispararam duas roqueiras cheias de pedras, pregos e pelouros, com que fizeram grande espalhafato, mataram alguns e feriram tantos que os obrigaram deixar-lhe a náu e irem-se curar á cidade. Os flamengos, que se viram livres, se”foram á ilha de Sant Anna, quinze léguas do Cabo-Frio pera o Norte, a tomar água, de que estavam faltos, e ha alli boas fontes e bom surgidouro pera naus e, porque não tinham batei, fizeram uma prancha em que foram cinco com os barris á terra e, pondo um no pico da ilha a vigiar o mar, os quatro enchiam os barris, e os iam levando poucos e poucos.
Não ficavam na náu mais que outros quatro homens e dous moços, porque a mais gente lhes haviam levado as canoas, o que considerado pelos indios, que também eram quatro, remetteu cada um a seu com facas e terçados e, como estavam descuidados, facilmente foram mortos. Os dous moços grumetes reservaram fechandoos na camera, porque não avisassem aos da água quando viessem, e porque depois os ajudassem na navegação. E assim em chegando os da água a bordo os mataram e, cortadas as armarras, largaram as velas ao vento Sul que então ventava e era em popa, pera a sua aldeia; mas, como não sabiam navegar aos bordos e estando já perto delia se virou o vento ao Nordeste, tornaram a voltar pera o Cabo-Frio, passaram-no, e iam perto da barra do Rio de Janeiro, quando outra vez lhe ventou o Sul e, como do Cabo-Frio ao Rio corre a costa de Leste a Oeste e o Sul lhe fica travessão, alli deu a náu atravez e se fez em pedaços, salvando-se todavia os indios a nado, que levaram a nova a Martim de Sá, o qual, posto que já tinha acabado o seu governo, porque em aquelle mesmo dia entrou seu successor Airfonso de Albuquerque, ainda com seu beneplácito foi ver se podia salvar algumas fazendas das que sahiam pela costa, mas poucas se aproveitaram por virem todos dos mares damnadas e desfeitas.
Fragmento do Livro Quarto, Capitulo Trigesimo Sétimo, intitulado De como Salvador Correia do -Rio de Janeiro e Hyeronimo Cavalcanti de Pernambuco vieram em soccorro á Bahia e o que lhes aconteceu com os hollandezes no caminho:
Em o capitulo vigésimo oitavo deste livro dissemos como, depois da Bahia tomada pelos hollandezes, foi o seu almeyrante Pedro Peres com cinco naus de força e dous patachos pera Angola. O fim e intento que os levou foi pera a tomarem e delia poderem trazer negros pera os engenhos, pera o qual diziam que se haviam contratado com el-rei de Congo, e na barra de Loanda andavam já outras naus suas e tinham queimados alguns navios portuguezes e feitas outras presas em tempo que o bispo governava pela fugida do governador João Correia de Sousa. Porém, como lhe sucedeu no governo Fernão de Sousa e teve disto noticia, se aprestou e fortificou de modo que quando os hollandezes chegaram não puderam conseguir o seu ‘intento, nem fazer mais damno que tomar uma náu de Sevilha que ia entrando e dous ‘ navios pequenos.
E assim se tornaram á costa do Brasil e entraram no rio do Espirito Santo a 10 de Março de 1625, onde havia poucos dias era chegado Salvador Correia de Sá e Benevides com duzentos e cincoenta homens e índios em quatro canoas e uma caravela que seu pai Martim de Sá, governador do Rio de Janeiro, mandava em socorro da Bahia,. o qual ajudou a Francisco de Aguiar Coutinho, governador e senhor daquella terra do Espirito Santo, a trincheirar a villa, pondo nas trincheiras quatro roqueiras que na terra havia, e desembarcando os hollandezes lhes tiraram com uma dellas e lhes mataram um homem. E depois de entrados na villa lhe sahiram os nossos por todas’as partes, Com grande %rro do gentio, e lhes mataram trinta e cinco e cativaram dous, sendo o primeiro que remetteu á espada com um capitão, que ia diante, Francisco de Aguiar Coutinho, dizendo-lhe: «Si vós sois capitão, conhecei-me, que também eu o sou», e com isto lhe deu uma grande cutilada, com que o derribou em terra.
Também o guardião da casa do nosso padre S. Francisco, frei Manuel do Espirito Santo, que andava com os seus religiosos animando os nossos portuguezes, vendo já os inimigos junto ás trincheiras, se assomou por cima dellas com um crucifixo dizendo: «Sabei, lutheranos, que este senhor vos hade vencer». E com isto, vendo-se livre de um chuveiro de pelouros, se foi ao sino da. igreja matriz que alli estava perto, e o começou a repicar publicando victoria, com que a gente se animou mais a alcançal-a, de sorte que o general dos hollandezes se retirou pera as naus com perto de cem feridos de trezentos que haviam desembarcado, e alguns mortos, entre’os quaes foi uni o seu almeyrante Guilherme Ians, é outro o traidor Rodrigo Pedro, que na mesma villa havia sido morador e casado com mulher portugueza e, sendo trazido por culpas a esta Bahia, fugiu do cárcere pera Hollanda, e vinha por capitão em uma náu nesta jornada. E com esta raiva mandou o general uma náu. e quatro lanchas a queimar a caravela de Salvador Correia, que havia mandado metter pelo rio acima em um esteiro, mas elle acudiu nas suas canoas e lhes matou quarenta homens, e tomou uma das lanchas.
O dia seguinte escreveu o general a Francisco de Aguiar em este modo: «Vossa Senhoria estará tão contente do successo passado, quanto eu estou sentido, mas são successos da guerra; si me quizer mandar os meus, que lá têm cativos, resgatal-os-ei; quando não, caber – nos-á mais mantimento aos que cá estamos».
Isto lhe escreveu o general cuidando que ficaram na terra menos mortos e mais cativos, mas nem esses poucos lhe quiz mandar o governador, e assim se fez o hollandez á vela em 18 de Março, e se partiu com muito pouca gente, donde em sahindo topou com o navio dos padres da Companhia, em que nos haviam tomado, e os mesmos hollandezes haviam dado a Antônio Mayo, mestre do navio de D. Francisco Sarmiento, em troco do seu, e vinha já outra vez do Rio de Janeiro carregado de assucar pera a ilha Terceira, o qual trouxeram até a barra da Bahia E dahi mandaram um patacho de noite reconhecer o estado do porto e das naus que nelle estavam e por dizerem que era a armada de Espanha, descarregando nas naus e pondo fogo ao navio, se foram pôr defronte de Olinda em Pernambuco, donde tomaram um negro de João Guterres, que andava pescando em uma jangada, e lhe perguntaram si estava a Bahia recuperada, o qual não só lhes disse que sim, sinão também que mandara o general D. Fadrique de Toledo matar os flamengos todos: e elles (ainda que era mentira) o creram, dizendo não seria elle castelhano e descendente do duque de Alba. Pelo que se foram á ilha de Fernão de Noronha a fazer aguada e chassinas, com que se tornaram pera Hollanda levando o negro comsigo e aos mais negros e brancos que haviam tomado no navio dos padres deram um patachinho, em que foram cahir á Parahiba e contaram estas novas. E Salvador Correia, que ficou victorioso no Espirito Santo, se partiu nas suas canoas com a sua gente pera a Bahia, onde se metteu entre a armada e foi dos generais e de todos aquelles fidalgos bem recebido.
Fragmento do Santurio Mariano, que, segundo o editor, “devem preceder do exemplar completo desta Historia, que ainda não foi encontrado”.
E disto se havia feito aviso a el-rei, que, sabendo a facilidade com que carregavam era por não ser aquelle sitio [Cabo Frio] povoado, e ficar longe do rio de Janeiro, donde se não podia acudir tão depressa, para se remediar este mal, escreve* ao governador Gaspar de Sousa com muita instância e encarregando- lhe muito o mandasse logo povoar e fortificar. Informado o governador que Estevão Gomes, morador no rio de Janeiro, podia fazer bem este negocio, por ser homem rico, senhor de dous engenhos, e que em todos os rebates que se offereceram no rio de Janeiro de cossarios era dos primeiros, que acudia animosamente com a sua canoa e escravos, de que tinha certidões de todos os capitães-móres, lhe passou provisão, para que o fosse da povoação de Cabo-frio, pedindo-lhe a aceitasse e fizesse como delle esperava, e a Constantino Menelau que o provesse á custa da fazenda del-rei de soldados, munições e todas as mais cousas necessárias para a povoação e defensa da terra.
Aceitou Estevão Gomes o que se lhe encarregava, e o menos foi o que se lhe deu para o muito que despendeu da sua fazenda, e assim se fortificou e começou a povoar, sendo também para isto grande ajuda uma aldeia de indios que os padres da Companhia, á instância do governador, levaram das suas doutrinas da capitania do Espirito Santo, com os quaes sahiu o capitão a vinte e tantos hollandezes que alli sahiram de uma grande náu a fazer aguada, aonde matando-lhe dezoito se tornaram só três ou quatro no batei a dar aviso ao outro batei, que também ia ao mesmo effeito de tomar água, porque iam para a índia, e estavam delia muito faltos. E por esta causa quizeram matar cincoenta portuguezes, que traziam comsigo e haviam tomado em um navio que ia para a Mina, si não acudira o seu predicante, ainda que hereje, dizendo que era injustiça pagarem os innocentes pelos culpados, quanto mais que nem estes haviam peccado em defender a água da sua terra, nem os seus que haviam escapado se queixavam tanto dos portuguezes quanto dos cruéis indios selvagens. E assim mandaram á terra um bote com bandeira branca e uma carta ao capitão, pedindo algumas pipas de água a. troco dos portuguezes, que traziam cativos.
De tudo fez o capitão aviso ao governador do Rio de Janeiro, de quem era inferior, que já não era Constantino Menelau, sinão Ruy Vas Pinto, que lhe succedeu, o qual, feita sobre isto uma junta de religiosos e dos officiaes da camera, e acordaram se lha mandasse dar, e elles largaram os portuguezes cativos, excepto o capitão do navio, que levaram comsigo.
Desta venda fizeram os negros grande galhofa, dizendo que mais valia um preto, que cincoenta brancos; porque elles custavam ordinariamente quarenta mil réis, (mas isto era naquelle tempo) e os brancos se compravam por menos de uma pipa de água.
Fez também pazes o mesmo capitão de Cabo-frio com os indios guaytacazes, gentio alli visinho, que nunca se poude conquistar, ainda que para isso foi Miguel de Azeredo, sendo capitão do Espirito Santo, e outros do Rio de Janeiro; porque vivem em terras alagadiças mais a modo de homens marinhos que terrestres e, quando se ha de chegar ás mãos com elles, mettem-se dentro das águas, aonde se não pôde entrar nem a pé, nem a cavallo.
Mas por uma mortifera doença de bexigas, que padeceram, se foram sujeitar ao capitão Estevão Gomes, dizendo que queriam ser seus compadres e dos brancos e commerciar com elles. Desta sorte ficou aquella nova capitania de Cabo-frio pacifica, e foi isto pelos anos de 1615, pouco mais, ou menos. Não é aquella povoação de poucos interesses, mas os portuguezes só sabem conquistar, e não povoar.