Referência

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931. p. 179-192. Disponível em: . Acesso em: .

Créditos

Academia Brasileira de Letras

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1558: Carta que o irmão Antônio Blasquez escreveu da Bahia do Salvador, das partes do Brasil, o anno de 1558, a nosso padre Geral

Cobiça dos Christãos. — Fugida dos índios. — Fructos entre os que ficaram. — Aldeias do rio Vermelho, de S. Sebastião [São Sebastião]. — Casos edificantes. — Escravatura dos Christãos. — Estudos no collegio. — Ambrosio Pires. — Abandono da aldeia de S. Sebastião. — Fugas da aldeia de Simão. — O ocupações dos Irmãos. — D. Luiz de Vasconcellos. — Chegada de Men de Sá [Mem de Sá]. — Morte de Fernão de Sá. — Primeiros actos do Governador. — Rara virtude de uma índia.

A GRAÇA do Espirito Santo seja sempre em nosso favor e ajuda. Amen.

Excusar-se-á por esta via tornar a mandar os quadrimestres passados, porque, posto que fossem por uma só via, foi a mesma substancia delles escripta em outra carta sem nome de quadrimestres por diversas vias, e portanto esta tratará de Maio por diante até á partida dos navios, segundo a ordem que agora escreve o padre João de Polanco, que se tenha e tratará cousas de dez ou doze mezes. E porque lá se deve esperar com maiores desejos de saber do fructo que com a Gentilidade se faz, me pareceu bem começar por isso. Isto foi mui pouco todo este tempo, até vir este novo Governador, com cuja vinda e com o que começa de fazer nos alegramos muito, e esperamos tirar fructo de nossos trabalhos com a ordem bôa em que a terra se irá pondo; primeiro, porém, contarei do tempo de nossa desconsolação e trabalho, para que saiba depois melhor ouvir e praticar de nossas consolações e alegrias in Domino.
Por outras cartas, saberá a grande sede e cobiça dos Christãos desta terra em lançar daqui de em redor da cidade aos índios, e cresceram tanto estes tyrannicos desejos porque lhes deixassem as roças e terras desembaraçadas, que, por todas as vias que podiam, os perseguiam, levantando mentiras, dizendo-lhes que os haviam de matar como chegasse o novo Governador, que esperavam; outros, tomando-lhes á força o seu e dando-lhes muitas pauladas; e muitos, vendo-se sem roças, nem terra onde as fazer, eram forçados a ir-se. Ajuntava-se ,a isto verem elles que lhes tyrannisavamos sua péssima liberdade de viverem em seus torpes costumes, que era para elles jugo mui pesado, pelo que sobreveio grande inquietação entre os índios, de maneira que cada um buscava ir fazer o ninho em outra parte, levando-nos os filhos já doutrinados, onde não temos esperança de os ver, e destes foram os primeiros aquelles que, do tempo passado e guerras passadas, se achavam alguma cousa culpados, e depois os outros; alguns poucos ficaram aqui por se assegurarem que não os matariam, por nossas palavras.

Deste negocio resultou um grande mal para nós outros e pouco credito entre os Gentios, e foi que, como antes lhes assegurávamos que não lhes fariam mal, si fossem christãos fieis e deixassem os seus costumes, vendo depois os aggravos tão grandes que lhes faziam e quão mal os podiamos soccorrer, ficamos entre elles havidos por mentirosos, e, por conseguinte, toda a nossa pregação e doutrina desacreditadas. De maneira que todos os meios humanos são contra nós, scilicet: os muitos escândalos dos maus Christãos e tyrannias que não levam meio, e o péssimo exemplo de suas vidas, e a Justiça para castigar os delinqüentes mui remissa, e, além disto, a pouca disposição da Gentilidade, por não lhes dar lei de vida e sujeição honesta pondo-os no jugo de Christo; mas anda cá tudo tão ao revéz do que devia ser, e, para viverem nos seus maus costumes, têm toda a liberdade e favor que querem; e, para se servirem delles e tomarem-lhes o seu e não os deixarem viver em paz, mas em continuo desassocego, só para isto os querem e têm sujeitos com muitos e pesados trabalhos, por mui justo juizo de Nosso Senhor, que, por tal meio, quer castigar esta geração adultera; e disto se segue que, podendo facilmente tirar a estes maus visinhos as matanças dos contrários e suas guerras, tão prejudiciaes e outros maus costumes, não ha quem isso pretenda; antes com grande crueldade de coração, folgam e se regozijam de os ver matar e comer, como si vissem lebreos mui encarniçados e porcos montezes.

Esta é a piedade dos corações da gente desta terra, assim para com os corpos como para com as almas dos Gentios; e, si disto nos queixamos algumas vezes, respondem que os deixem matar e comer, que são cães; e os que nisto faliam mais moderadamente dizem que poderão leevantar-se contra os Christãos, cousa muito fora de caminho para quem tem experiência dos índios e vê o grande temor delles e poder dos Christãos; entretanto que, querendo os Padres ir daqui três léguas a doutrina e pregar á muitas aldêas que estavam juntas, e em uma casa no meio de dous engenhos de assucar, para que d’ali visitassem as aldêas e a gente dos engenhos, o estorvaram por uma carta d’El-Rei, em que ordena ao Governador que não deixe entrarem os Padres pela terra a dentro, dizendo que os poderão matar os índios. Isto me parece a cousa mais fora de caminho do mundo, porque vemos que naquellas aldêas e de outras dez léguas além, nunca sahem Christãos dellas, e vemos e sabemos ao certo que os maus Christãos1Apenas para, uma vez mais, aecentuar o depoimento de crueldade e da cobiça dos Colonos. Além dos índios tinham os Padres de combater e, moralmente, cateehizar os Christãos. Esta faee de sua missão não é sempre considerada. E isso tornava ainda mais difficil, pelos exemplos maus, a cate^ese do Gentio. lhes fazem mil contos de aggravos e tyrannias, tomando-lhes o que têm, e suas filhas e ás vezes suas mulheres, dando-lhes e ferindo-os e matando-os: com tudo isto não ousam fazer mal a algum Christão e por conseguinte muito menos o fariam a nós, que não lhes tomamos o que possuem, mas antes lhes desejamos dar as entranhas para que possam conhecer a seu Senhor Jesus Christo e Redemptor, quanto mais que embora o fizessem e nos matassem, ditosos seriam os que assim morressem em serviço da Christandade com zelo da salvação das almas, e então tenho por certo viria maior bem á terra toda, assim consagrada com o sangue innocente.

Deste mal se segue outro mui grande, e é que, como a conversão destes Christãos perdidos que andam entre a Gentilidade é abominação, com o seu exemplo vão os índios imitando-os no mal, e assim ajuntam a sua maldade com a daquelles è fazem uma mescia diabólica, a qual ordena o inimigo do gênero humano, para que duplex, vel triplex funiculus difficilius rumpatur, e assim se fazem cada vez mais incapazes da palavra de Deus; e saiba Vossa Paternidade que são mui poucos os peceados da Gentilidade em comparação dos que aprendem dos maus Christãos, porque, tirando-lhes as matanças e o comerem carne humana, e tirando-lhes os feiticeiros e fazendo-os viverem com uma só mulher, tudo o mais é nelles mui venial2Outro depoimento, pelo Gentio, porque todos os demais vicios da carne são mui estranhos entre elles.

Mas, porque não seja tudo escrever desconsolações, não deixarei de confessar e louvar as obras do Senhor, o qual, posto que não satisfaça ainda em tudo os nossos desejos nesta parte em dar copiosa e efficaz redempção e entrada destas gentes em sua Egreja, por não ser ainda chegada a sua hora, todavia, em casos particulares nos consola muito a sua misericórdia e beneficência, e vemos em muitos o effeito que a graça do Senhor obra nelles, e vamos bem entendendo e conhecendo que também desta geração ha muitos povoadores para os reinos do céu, que são como rosas tiradas de tantos espinhos.

Estes poucos índios que ficaram são-nos causa de muita consolação, por vermos nelles o cuidado que têm de vir aos domingos á egreja, e ás vezes com suas pobres offertas de espigas de milho e farinha; quando têm enfermos, trazem-nos á egreja para que lhes demos saúde com orações, e outros signaes que denotam dar fé e credito ao que se lhes prega, e assim se vai introduzindo nestes poucos o venerar e reconhecer a seu Deus, com este e outros signaes, e nisto experimentamos muito a bondade de Deus Nosso Senhor, porque trazem muitos meninos que parece impossível viverem e logo que são baptizados saram; e outros muitos leva Nosso Senhor para si e cremos que assim, desta maneira, a uns e a outros quer salvar, e disto tomam uns grande credito em nós por verem seus filhos sãos, e os outros, a quem morrem, dizem que nós os matamos com o baptismo, ensinados por seus feiticeiros, e assim cada um diz desta feira assim como lhe vai nella. E posto que nisto ha muitos casos particulares, contentar-me-hei com dizer alguns notáveis.

Aconteceu no rio Vermelho, em uma egreja de Nossa Senhora que um índio, tendo um filho pequeno quasi para morrer, nunca consentiu que o baptizassem; depois de por isto se haver feito oração, no outro dia o trouxe á egreja pedindo que o baptizassem, já quasi a expirar; em tanto que por se temer que não poderia supportar o frio do exorcismo, o baptizaram sem elle: foi Nosso Senhor servido que logo tivesse saúde, com o que o pae ficou muito alegre e teve grande credito em o que lhe pregavam acerca disto e assim o declarava a muitos.

Na egreja de S. Sebastião, aldêa do Tubarão, havia um mancebo, já grande, de 15 ou 16 annos, que se extremava de todos em bondade e virtude e no cuidado de aprender e nos signaes de amor que nos mostrava e em se apartar da conversação dos seus e nunca deixar a nossa, nem podia sahir de nossa casa, e assim conversava com seus mestres como espantado, no que bem viamos ser o tal tocado da mão do Senhor. Este adoeceu de morte e não tinha mais refrigerio sinão emquanto estávamos com elle fallando-lhe da gloria dos céus; pediu o baptismo com bons signaes, deram-lh’o e levou-o Nosso Senhor para si, e como era filho de um índio principal, foi mui sentida a sua morte, e os feiticeiros diziam que o baptismo o matara, e que por ser tanto nosso amigo, morrera. O pae, porém, não pensou assim, por ver os muitos signaes de amor que lhe mostrávamos e o muito que se trabalhou pela sua saúde com remédios humanos. Estes rapazes pequenos são toda a nossa alegria, si os pães não os levassem no melhor; mas também dos grandes tem Nosso Senhor alguns que dão os melhores signaes de sua fé. Um d’estes grandes, tendo já sua mãe muito velha e para morrer, mostrou o grande desejo que tinha que sua mãe não se perdesse em admoestal-a para o baptismo sem nol-o dizer, de maneira que a moveu a pedil-o de coração, que é cousa que estas velhas mui poucas vezes fazem. Outro, que em tempo passado puzemos em officio de tecelão, agora já homem e official, dá tão boas mostras de si que nos espanta o zelo com que falia aos seus; e como se presa de bom christão, vem pedir muitas vezes confissão, e sabe muito bem confessar-se, a metade em portuguez e a outra metade pela sua lingua; por isso dizemos: Non inveni tantam fidem in Israel. Um índio, deixando sua mulher de quem tinha muitos filhos e tomando outra, com a qual estava, deixando a primeira com os filhos padecer muita necessidade, e sendo advertido por seus mestres e reprehendido não desistiu: succedeu adoecer a manceba e morrer de morte súbita e muito espantosa a todos, porque morreu inchada, cousa que mettia medo. Com a morte da qual, lhes fizeram uma predica sobre a fidelidade do casamento, mandando que não a chorassem, pois estava no inferno, e muitas diziam: Eu não tenho mais que um só marido; de sorte que ganharam todos temor e foi-lhes muito bom, pois elles têm em pouca conta os adultérios e os peceados da carne, porque são de tal qualidade estes Gentios que parece que nunca tomam as mulheres com o intento de as manter sempre[notaComo os Civilizados, os “ultra-civilizados”, aliás.[/nota]; o que se conhece claramente por serem fáceis em deixar uma e tomar outra, e ellas do mesmo modo.

O mais copioso fructo que se faz é com a escravatura dos Christãos em doutrina e confissões, mormente com os que morrem, porque, como já têm muita noticia da Fé e crêm haver outro mundo, onde se vive com Deus, mais facilmente podemos movel-os á contricção dos seus peceados e aborrecel-os, por ser offensa a” este Deus e Senhor nosso, e muito mais fructo se faria si os senhores delles tivessem mais zelo pela sua salvação, porque commumente não querem delles mais do que servir-se de seus corpos como de cavallos ou outros animaes, e si morrem, enterram-n’os nos muladares, e os que chamam quando estão doentes é por grande importunação e por se lh’o dizer muitas vezes nos púlpitos.

O estudo se continuou estes mezes no collegio da cidade com muita diligencia, porque se lia em duas classes: o padre Ambrosio ensinava aos que mais sabiam, e Antônio Blasquez aos outros mais somenos, scilicet -. aos de casa e a quatro ou cinco capellães da Sé, porque não? são mais os estudantes nesta terra, ainda agora, e estes, com o alvoroço de irem para Portugal a buscar benefícios da egreja, deram muitas faltas.

Neste tempo não houve muitas prédicas aos Christãos, não só por o padre Ambroiso Pires ser oecupado em ler grammatica, como por outras ocupações, não deixando todavia de o fazer nas festas principaes e alguns domingos, porque assim parece que se imprime mais e o ouvem com maiores desejos; têm-lhe muita devoção todos e dão muito credito ás suas palavras, posto que, pela fraqueza e habito que têm já nos vicios, mui pouco fructo vemos, nem o podemos ver, pois lhes temos fechadas as confissões por não encontrar por acaso um capaz de absolvição, porque todos têm negocio com que estão em peccado, e os mais têm escravos que não o podem ser; mas como acham elles outros Padres que têm maiores bullas que nós, para elles se vai toda a gente; á nossa parte não cabem sinão alguns pobrezitos e algumas mulheres que deste mal estão livres. Estava toda esta terra até agora mais que perdida assim no ecclesiastico como no secular e mais senhoreada dos vicios e creio não se achará outra de tamanho em todo o mundo. Muita parte de tudo isso é não virem cá boas sementes3Cf. Nobrega, Cartas, p . 59: “Mal empregada esta terra em degredados…” O Padre Pires (C. Av., X I V ) : diz aqui mesmo que “o furtar (não existe) senão entre pessoas que por isso vieram degradadas”. Esses degradados aqui sem lei, nem rei, estavam longe de se parecerem, diz Frei Vicente do Salvador, com aquelles pêssegos ou pomo pérsico de que fala o Poeta: “melhor tornado no terreno alheio” (Op. cit., 1. III, cap. 2o). Bem ao contrario ., nem boas arvores que dêm bons fructos, e si algum cá veiu, foram tantos os espinhos que suffocaverunt eam, porque são tantos os ódios e as parcialidades que nenhum pôde escapar de seus laços e estão já os vicios tão arraigados nesta terra e tão poderosos e fortes nos corações dos mais, que é mui fraca a nossa possibilidade para contra elles prevalecer, si o Senhor do alto não o remedeia.

O fructo que se fazia na Gentilidade diminuiu cada vez mais, porque, crescendo a tyrannia, necessário era que os índios se apartassem de nós outros, e foi de maneira que conveio em largar a egreja de S. Sebastião, por não haver na aldêa a quem doutrinar, porque todos se foram, deixando dous ou três por cumprimento apparelhando-se para que, quando houvesse occasião, se pudessem acolher. Estes desta aldêa foram sempre os mais receiosos, porque eram da casta daquelles com quem os Christãos tiveram guerras passadas e nunca quizeram fazer roças nem mantimentos, por mais que nós outros lhes assegurávamos que lhes não fariam mal.

De outra aldêa grande que d’aqui se visitava, onde o Principal é um christão dos que no tempo passado no principio se baptizaram, que se chama Simão, também se foram muitos; ficou o Principal com alguns poucos; estes visitam os da cidade quando se pôde fazer.

Das outras duas povoações que doutrinamos se foram quasi todos; alguns poucos ficaram e estes também se iriam todos, si a tormenta durara muito; cá tratávamos com o Governador passado assignalar sitio e terras para seus mantimentos; disse que não o podia fazer, que isto pertencia a El-Rei, e segundo a ordem que elle desse faria; mas já agora isto não é tão necessário para estes porque se foram, mas serviria para os mais, os quaes tomarão a lei que lhes derem, e jugo mais moderado que ser pôde em que os puzerem. Todavia não quizemos largar a egreja do rio Vermelho de Nossa Senhora, para sustentar estes poucos que ficaram e porque está em um sitio muito aprazivel e serve-nos de oratório apartado e mais quieto para a oração; neste residi eu alguns dias. Os que aqui residem se sustentam de esmolas que vão pedir a uma povoação de Christãos a que chamam a Villa Velha, porque os índios, como são poucos e pobres, já não podem mantel-os sinão com algum pescado que pescam. Durante a semana se ensina a doutrina, mas são mui poucos os que açodem; aos domingos vêm mais, ou, segundo parece, todos os que podem vir, e com esta pobreza nos contentávamos, para que não se apagasse de todo o fogo esperando accender-se cedo, de maneira que abrazasse os corações de muitos.

No collegio da cidade a doutrina se prosegue com muita diligencia; aos domingos de festa se ensina duas vezes, scilicet: á missa e depois á tarde, e commumente tem pratica que explica a doutrina em sua lingua e a ella vem muita da escravatura, principalmente mulheres.

O padre Ambrosio Pires proseguiu nos seus sermões estes mezes e mais freqüentemente, e tinha sempre grande concurso de gente com muito fervor de o ouvir, assim os da terra como a gente da nau da índia, que era muita e nobre, e cremos haver-se feito muito fructo e conheceu-se bem o muito credito que lhe tinham em um caso que aconteceu, e é este: que um dia, véspera de Todos os Santos, se levantou tão grande ruido de cutiladas que toda a cidade estava em armas, scilicet: os da nau da índia contra os da terra, e foi esta guerra civil tão temerosa que temiamos poder morrer tantos de uma parte e da outra que fosse depois fácil cousa á Gentilidade poder acabar os que ficassem; foi-se o padre Ambrosio Pires, e mettendo-se no meio das lanças e das espadas e pedradas, dando gritos a uns e a outros, foi muita parte em se apaziguar, sem lhe fazer nenhum mal, a fúria desatinada de todo o povo; no dia seguinte, de Todos os Santos, posto que estivesse muito rouco do dia passado, pregou com tanta discrição e fervor que cremos bastaria para confirmar as pazes.

Depois que conhecemos a pouca disposição na terra para contender com Gentios, se recolheram alguns obreiros ao collegio e tiveram mais tempo para entender com os Christãos e assim se visitava a cadêa e o hospital mais a miúdo do que antes e se serviam os presos; e porque elles padecem muitas necessidades e nós outros pouca possibilidade para os prover e na terra poucas esmolas, ao menos lhes poupamos algum dinheiro, que gastavam com quem lhes lavava os vasos e carregava a água; e servia de boa mortificação aos Irmãos e edificação aos presos, que, como é gente mui incorrigivel, este exemplo os movia mais á contricção do que nenhumas pregações, e assim pediram os mais confissão e foi isto causa de que, sabendo-o o Governador, determinou prover de quem os servisse. Entendia-se também na doutrina da gente do mar que trazia a nau da índia, que passavam de 100 pessoas, em que andam muitos moços; a todos se fazia doutrina na mesma nau, ás vezes cada dia e ás vezes de dous em dous dias, com suas praticas de Nosso Senhor.

Esperando toda a terra navios de Portugal, por haver muito tempo que não vinham, chegou uma caravela que vinha sem nemuma provisão para a terra e vinha para ir daqui a S. Thomé [São Tomé]; esta deu novas como Men de Sá havia três dias que tinha partido da ilha do Cabo Verde em uma nau, em companhia de uma caravela, quando esta mesmo partia e que de razão não havia de tardar muito. Estando assim todos com grande alvoroço esperando, véspera de Nossa Senhora de Agosto, chegou uma nau mui formosa da índia, que era a capitanea, em que ia D. Luiz4D. Luis de Vasconcellos de Menezes era filho de D. Eernando de Menezes, Arcebispo de Lisboa; mais tarde, tornaria ao Brasil, em 70, como Governador geral, com o Padre Ignacio de Azevedo e seus 39 companheiras, todos trucidados pelos piratas calvinistas Sore e Cap-de-Ville, a 15 de julho, junto á ilha de Palma., filho do Arcebispo de Lisboa, por Capitão Mór, e veiu com elle a caravela que vinha com Men de Sá, e disse que se havia separado delle por acaso antes da Linha; esta nau, posto que foi em parte proveitosa para a terra, por trazer vinho e farinha para as missas, porque já não a podiamos descobrir, pannos para a gente se vestir, comtudo poz a terra em aperto de mantimentos, porque não os havia nem para os da terra, porque os índios não os fizeram nem os tinham e havia fome geral entre elles; a causa disso foi porque nunca estiveram seguros, mas medrosos que as expedissem da terra, como agora os expedem. Os Christãos tão pouco tinham, sinãc alguns poucos, porque os desta terra mais se dão a folgar e jogar e passear, fizeram nesta terra antes de tempo corte de Príncipes, havendo nella ainda agora mister quem habite e trabalhe com fouces e enxadas.

Dahi a alguns dias e quando estávamos mui receiosos com a tardança de Men de Sá, chegou outra caravela, que vinha carre-gada de escravos de Guiné, da ilha do Principe. Esta disse como a nau de Men de Sá fora aportar aquella ilha com grande aperto e falta d’água, e que dali era já partida no mesmo dia em que esta partiu; mas comtudo não podia chegar, que cansavam os espíritos de esperar, até que Nosso Senhor por sua misericórdia a trouxe, a oitava dos Innocentes, havendo oito mezes que partira de Lisboa5Noticia da trabalhosa travessia de Mem de Sá que poz oito mezes, entre Lisboa e a Bahia., com trazer muita gente menos, porque morreram dê fome e calores da costa de Guiné mais de 40 pessoas.

Depois de haver chegado, começou logo a pôr a terra em ordem, assim aos Christãos como aos Gentios, porque aos Christãos atalhou as demandas com que toda a terra andava revolta, tirou o jogo da cidade, que tão publico andava e com muita offensa do Senhor; fazia aos vagabundos e ociosos trabalhar, assim por palavra, como pelo exemplo, porque é mui fagueiro; tirou que andasse entre os índios a gente que entre elles soia ser escandalosa. Isto era do que a terra tinha mais necessidade. Aos Gentios também começou a ordenar, porque fez logo ajuntar quatro aldeias em uma grande, para que com isto pudessem mais facilmente ser ensinados daquelles que estavam aqui mais perto da cidade, e, a todos os que pôde, obriga que não comam carne humana, e fal-os ajuntar em grandes povoações; começou já a castigar a alguns e começa a pôl-os em jugo, de modo que se leva outra maneira de proceder que até agora não se teve, que é por temor e sujeição; e pelas mostras que isto dá no principio, conhecemos o fructo que adiante se seguirá, porque com isto todos temem e todos obedecem e se fazem aptos para receber a Fé. Mas sempre o inimigo de todo o bem busca estorvos grandes, e um delles foi a morte do filho do Governador, o qual, sendo mandado por seu pae a soccorrer a capitania do Espírito Santo com certos homens, foram dar onde não os mandavam e, comtudo, renderam duas cercas, onde mataram muitos Gentios e prenderam boa parte delles; com este bom successo, querendo o Capitão seguir a victoria, deu na terceira cerca, onde se acabava tudo de vencer; nesta o deixaram todos os seus, só com dez homens a pelejar e se acolheram aos navios, uns para curarem algumas feridas de pouco momento, outros para arrecadarem suas peças, o que elles mais desejavam. Estes dez, com o seu Capitão, pelejaram tão bem que tinham já a cerca rendida, si os acudissem com duas panellas de pólvora, que nunca lhes quizeram levar, até que os índios attentaram que eram tão poucos, com o que cobraram animo e carregaram sobre elles e fizeram-n’os vir recolhendo até aos navios e quiz a desventura que lhes haviam tirado os navios e barcos de onde os haviam deixado, que foi desconcerto nunca ouvido, e ali, na praia, pelejaram um grande espaço, esperando soccorro dos navios, e ao cabo nunca lhes veiu, e ali mataram o Capitão, filho do Governador6O filho do Governador Mem de Sá, Fernão de Sá, foi enviado em soecorro ao Espirito Santo, aggredido por um levante de indios. Na acção foi victima (diz Fr. Vicente, no rio Criearé, em Porto Seguro… — o rio Oricaré é o S. Matheus, entre as capitanias de Porto Seguro e do Espirito Santo) de uma freehada o joven commandante a quem succedeu Diogo de Moura, que depois acabou com a empreza. A narração de Blasquez torna culpados aos companheiros de Fernão de Sá, por não o terem valido; Frei Vicente do Salvador a ninguém culpa, contudo Mem de Sá não os quiz ver, o que é uma sentença. Cf. Fr. Vicente do Salvador, op. cit., 1. III, cap. 7., com cinco, porque os outros salvaram-se a nado. Esta nova, ultra de entristecer os corações de todos os da terra, deu esforço e animo á Gentilidade por se matar pessoa tão assignalada. Outro estorvo maior que este temos, e é que, como a gente desta terra não busca, nem pretende a gloria de Deus, nem o bem universal, sinão o seu próprio, todos são em estorvar esta obra e esfriar a vontade e fervor que o Governador mostra: illic trepidaverunt semper ubi non erat, neque est timor, porque estando os índios sujeitando e obedecendo e tremendo de medo, os Christãos, com outro maior medo, lhes estão dando animo.

Esta quaresma não houve aqui sermão na cidade, porque nesta casa o padre Ambrosio e o padre Nobrega [Manoel da Nóbrega] estiveram sempre doentes. Antônio Blasquez somente pregou a Paixão; foi muita desconsolação! para todos, comtudo houve muitas confissões dáquedes que nós outros pudemos confessar, principalmente da gem te da terra, scüicet: escravaria, com os quaes se experimenta muito fructo com as confissões; e havia nisto muitas particularidades que dizer, mas bastará o que o padre Ambrosio disso poderá contar, pois vai lá, si lhe disser que a maior parte da escravaria fica por confessar, por não podermos nem haver quem o possa fazer, por que não temos cá mais que o irmão Antônio Rodrigues, de quem se possa confiar o sigilo da confissão. Este trabalhou muito esta quaresma aqui na cidade com a escravaria e quando tinha tempo visitava a cidade.

E para concluir direi por ultimo o que aconteceu nesta cidade digno de edificação e, por ser no Brasil, de muita admiração. Foi trazida de casa de seus pães uma índia brasilica mui pequena e, criando-se em bons costumes em casa de uma dona honrada, affeiçoou-se tanto á virtude e cousas do Senhor que propoz em sua alma (ensinada não por homens, sinão pelo Espirito Santo) de não conhecer varão e isto quanto lhe fosse possivel. Perseverando ella nestes desejos, cousa muito desacostumada entre as índias desta terra, o Demônio, inimigo da salvação dos homens, não podendo soffrer fazer-se tão grande deshonra em terra onde elle é tão honrado, trabalhou que ella tivesse amos que a tirassem de tal propósito, e creio que assim fora si o Senhor não a prevenira antes com sua Graça, ornando-a de uma grande fortaleza para que pudesse resistir e vencer ao Demônio de uns não bons homens, por meio dos quaes lhe queria roubar a jóia da castidade. Estes amos, pois a cometteram muitas vezes querendo defloral-a, aos quaes ellabresistiu com um animo mais que de mulher, rogando-lhes com as lagrimas nos olhos que tal cousa não quizessem fazer, pondolhes diante o mal que faziam a ella e a si mesmos; finalmente quão grande deshonra e desacato commettiam ao Senhor, verdadeiro amador dos limpos e castos. Os senhores com a tal novidade ficavam como attonitos e pasmados, e reconhecendo neda a virtude e a graça do Senhor, por algum tempo a deixavam; mas não durava muito: creio que seria parte por sua maldade, parte pela grande inveja do Demônio, que vendo que era vencido por uma índia brasilica, não creada em mosteiros nem em recolhimentos, mas nascida de gente boçal e quasi selvagem, sollicitava-os a que dobrassem sua alma a que consentisse nos seus torpes desejos, espantando-a algumas vezes com ameaças, outras attrahindo-a com mimos e palavras brandas; mas por fim, como acerca de Deus valem muito pouco ardis dos homens e menos malicias do Demônio, ainda que ponha todas as suas forças, acontecia-lhes ficarem envergonhados e o Demônio confundido e vencido. Vendo-se, pois, a pobresita perseguida e acossada destes seus amos, e advertindo que nós outros venerávamos a imagem de Christo Crucificado, poz em seu pescoço um Crucifixo para que com isso se amparasse e defendesse dos perversos amadores de seu corpo, dos quaes não se podia ver livre, nem pelos rogos, nem pelas lagrimas que chorasse; para este effeito lhe dava o Senhor grande copia dellas. Entristecia-se a triste de ver a sua desventura, buscando todos os meios de parecer mal aos homens, para ver si com isto a deixavam: não queria trazer nada em sua cabeça nem coifa nem outra alguma cousa que lhe cobrisse os cabellos; mas antes os trazia descabellados e mal compostos, para que desta maneira, parecendo feia adiante dos homens, fosse mui formosa diante os olhos de Deus.

Ó vergonha e confusão da gente christã! que uma moça brasilica confunda seus atavios e galas, com que desejam parecer bem aos homens e não a Deus, o que não fazia esta, que sendo-lhe dito que se limpasse e, deixados os vestidos sujos que trazia, tomasse outros, respondia que não era necessário, que o seu intento era agora dar e parecer bem a Deus, que aos outros não se lhe dava nada parecer feia e descomposta. Não se acabaram com isto os seus trabalhos, porque, vendo um seu amo a sua grande constância, não se atreveu a commetter tal abominação dentro de casa, porque temia que dando eda vozes e gritos, fosse sentido e por conseguinte tido em má conta: assim, levou-a para uma roça e estando ali sós, vendo ella que não tinha ali remédio humano, soccorreu-se ao divino, que nunca a ninguém sóe desamparar, e posta de joelhos diante do Senhor, os olhos arrasados de lagrimas, tirou o Crucifixo do pescoço e disse a seu amo: “Senhor, em reverencia a este teu Deus que adoras, te rogo que não toques em mim, porque não te aconteça algum mal si o fizeres.” Movido o amo com isto, desistiu da sua damnada intenção e, vendo que não lhe aproveitava para o que elle queria, a vendeu a outro homem, com quem experimentou as mesmas fadigas e angustias e por isso muitas vezes lhe fugia e andava amontada por casas de homens honrados, rogando mui continuamente aos Padres que fizessem com que algum homem casado a comprasse, porque com .solteiros já tinha experimentado que não podia ter vida: sua consolação e alegrias é ouvir pregações e confessar-se muitas vezes e procurar que as outras índias façam o mesmo, e dá-lhes o Senhor tanta graça em fadar d’elle, que os mesmos Christãos se maravilham das cousas que diz. Vendo os Padres a sua affeição, determinaram tirar nesta Paschoa alguma esmola, para que a forrassem e ella estivesse em casa de um homem honrado, para que d’ali servisse aos pobres do hospital e da cidade, trazendo-lhes água e o mais necessário para o seu serviço; já se tem toda junta a esmola em que ella foi apreçada. Prazerá ao Senhor, que a livrou de tantos trabalhos, dar-lhe sempre perseverança em seu serviço, pois, sendo antes captiva, tão livremente o servia.

Isto é, Reverendo em Christo, o que o Senhor por meio da Companhia tem obrado desde que escrevemos até ao presente; si não é tanto quanto é de razão que fora, segundo o trabalho que os da Companhia tomam com esta Gentilidade, tome todavia V. P. isto como de terra estéril e infructuosa, da qual esperamos, ajudados com a graça do Senhor e orações de V. P., tirar mais copioso fructo, segundo o verificam os principios em que se vão agora impondo. Nesta nada mais, sinão que ao presente ficam todos os Padres e Irmãos deste collegio de saúde, salvo o Padre Provincial, que com as suas continuas doenças está muito debilitado; mas, pela bondade do Senhor, com melhor disposição da que até agora ha tido. Elle e todos os desta casa pedimos ser encommendados nos devotos sacrificios e orações de V. P .

Da Bahia do Salvador, ultimo de Abril de 1558 annos.

Por commissão do P . Nobrega.

Indigno filho de V. P.

 

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