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07/11/2014: Entrevista da Sra. Carolina Abreu, ex-diretora da Superintendência do Iphan no Espírito Santo, realizada no dia 07 de novembro de 2014, por email
Esta entrevista foi realizada por Ana Gláucia Oliveira Motta e publicada como anexo em sua dissertação de mestrado, também publicada aqui.
Entrevista
Entrevistadora: a – Como surgiu a ideia da criação do Museu de Arte Sacra e Devoção de São Benedito?
b – Como se deu a escolha da Igreja Nossa Senhora do Rosário para abrigá-lo?
Carolina: a – A ideia da criação do Museu de Arte Sacra e Devoção de São Benedito fez parte das práticas de promoção e conservação do patrimônio cultural nacional no estado do Espírito Santo, sob a responsabilidade da coordenação sub-regional – 6ª.SubR, vinculada à então Coordenação Regional – 6ª.CR, com sede na cidade do Rio de Janeiro. Até o final da década de 1980, a atuação do Iphan no Espírito Santo dava-se através de um convênio com a universidade federal – UFES, através da gestão de um professor geralmente vinculado ao departamento de arquitetura ou ao de artes que, nomeado diretor, cumpria cumulativamente suas funções docentes e de pesquisa. O referido convênio deixava também ao encargo da UFES a gestão do Museu Solar Monjardim e da Coleção de Arte Sacra do Espírito Santo, transferidos por doação ao Iphan pelo Governo do Estado do ES. Até então, diversas intervenções pontuais de restauração e conservação arquitetônica foram realizadas, além da gestão dos dois museus: o do Solar e o de Arte Sacra, instalado na Capela de Santa Luzia, em Vitória. Em 1990, com a implantação de novo organograma, o Iphan criou uma unidade administrativa para o ES, dirigida por quadro funcional próprio, embora ainda sem equipe técnica nem administrativa. A partir daquele momento, vistorias para atualização e identificação do universo do patrimônio cultural protegido no estado indicaram, entre outras categorias de bens, a existência de acervos relacionados à devoção das irmandades católicas leigas, em suas igrejas. Esses acervos encontravam-se, em muitos casos, escondidos, sem identificação, mal guardados e em precário estado de conservação, a despeito de manifestações de interesse dos provedores das irmandades em preservar sua memória. Diante da situação emergencial de várias das edificações tombadas e de seus bens móveis, para que fosse cumprida a missão institucional do Iphan – a identificação, a preservação e a promoção do patrimônio cultural -, a Sub-Regional do Iphan no ES optou pela proposição de projetos através de parcerias locais como alternativa para viabilizar ações efetivas a curto prazo. Note-se que, naquele momento, os reduzidos recursos financeiros do Iphan para projetos e obras não chegavam ao estado: o ES era subordinado ao Rio de Janeiro, estado de maior visibilidade política e com a demanda de um universo tombado infinitamente maior. A busca de soluções urgentes para a situação dos monumentos tombados e de seus acervos, entre os quais se incluia a Igreja do Rosário em Vitória, resultou em profícuas parcerias envolvendo as prefeituras interessadas em valorizar o seu patrimônio de relevância nacional.
b – No caso do Museu em estudo, a Igreja do Rosário pertence e foi erigida pela então Irmandade de São Benedito do Rosário dos Homens Pretos (há divergências quanto ao nome no que se refere aos “Homens Pretos”), posteriormente reconhecida como Arquiepiscopal Irmandade de São Benedito do Rosário. A construção da Igreja do Rosário se confunde, portanto, com a devoção a São Benedito. Além das concorridíssimas procissões em louvor ao santo que ocorrem até hoje, todo 27 de dezembro, a bibliografia cita a antiga prática de leilões para a compra de alforria na casa anexa à igreja. Além disso, o antigo cemitério da irmandade, cujas ruínas podem ser visitadas na área externa da igreja, assim como os ossuários, no corredor lateral à nave, contíguo à torre sineira, lhes garantia a sepultura num tempo em que escravos não eram enterrados como cristãos. Quando os cemitérios foram regulamentados e transferidos para áreas específicas da cidade, a Irmandade de São Benedito do Rosário garantiu seu lote no cemitério no bairro de Santo Antônio. Havia, ainda, além do acervo, uma área grande que estava ociosa no pavimento superior da igreja, que permitia abrigar seus bens móveis em exposição e uma eventual reserva técnica.
E: No documento de criação do Museu (assinado pelo IPHAN, Irmandade e Prefeitura de Vitória) foi informado que seria selecionada uma equipe. Isso aconteceu? Se sim, como se deu esse processo e quais suas características?
C: Infelizmente, depois da inauguração do Museu não foi efetivada uma equipe permanente.
Durante o processo de recuperação da igreja e do acervo e da organização e montagem do Museu, os trabalhos eram realizados e acompanhados por técnicos, em geral um representante do Iphan local e outro da irmandade, e eventualmente um da prefeitura, para definir intervenções pontuais como as de acessibilidade, uso do prédio e procedimentos de conservação. Periodicamente vinham técnicos restauradores, arquitetos, engenheiros e museólogos de outras unidades do Iphan para orientação e execução de levantamentos e inventários, supervisão dos serviços de restauração, elaboração de proposta expográfica e orientação de monitores, nesse caso inclusive após a inauguração.
E: A documentação nos diz que a criação do Museu se deu de forma tripartite (IPHANIrmandade-Prefeitura de Vitória). Qual o papel do IPHAN (na prática) nesse processo? Como se deu essa relação entre as três partes?
C: Como nos demais casos, ao Iphan coube a iniciativa de organização das demandas, de elaboração dos projetos técnicos de restauração e de proteção do acervo e da igreja propriamente dita, bem como dos projetos de captação junto às instancias financiadoras, além da coordenação e supervisão dos serviços contratados pela irmandade, proponente formal dos projetos. A receptividade, o zelo e a dedicação da Srª. Nelce Pizzani Rios, Provedora da Irmandade à época, foi fundamental para a parceria que viabilizou a realização dos trabalhos de recuperação e promoção da igreja e de seu acervo, abrindo a casa de São Benedito e de seus devotos para a cidade de Vitória. No caso da acessibilidade, a rampa foi executada diretamente pela Prefeitura de Vitória, assim como a limpeza e manutenção da área externa da igreja.
E: Pareceu-nos, inicialmente, que a ideia era musealizar toda a igreja de Nª Srª do Rosário, transformando-a em um museu. No entanto, hoje percebemos que Museu e igreja parecem elementos distintos. A senhora poderia falar um pouco disso?
C: A ideia inicial da musealização era tornar acessível aos usuários e visitantes o acervo e as informações obtidas no processo de pesquisa e restauração da igreja e dos bens móveis da Irmandade. Naquele período, a interferência da Mitra Arquidiocesana ou de qualquer outra instância ou instituição era praticamente inexistente, ficando todas as decisões e obrigações relativas à conservação e uso da igreja a cargo da Irmandade, que convidava e pagava aos padres para celebrarem as missas. Não havia, portanto, divisão de poderes e responsabilidades quanto ao acesso e funcionamento do prédio. A montagem da exposição no piso superior, com a instalação de portas nos acessos, permitindo ou interrompendo o fluxo de pessoas em horários de missa, assim como a compatibilização de horários e dias de visita ao museu, davam conta, ao mesmo tempo, de preservar o uso religioso original do imóvel, uma vez que a irmandade era ativa, e de oferecer conteúdos que enriquecessem a visita com informações relativas aos significados históricos e culturais dos bens. Como não tenho acompanhado, há vários anos, a gestão da Igreja do Rosário, não tenho conhecimento do grau de integração ou de autonomia com que igreja e museu possam estar sendo geridos hoje.
E: Quanto ao acervo: como ele foi reunido? A documentação diz que seria composto por coleções pertencentes à irmandade e coleções de arte sacra (que estavam sob a guarda do Museu Solar Monjardim). Mas nos parece que, de fato, a coleção de arte sacra não foi incorporada. Assim, gostaríamos de saber, se foi realizada a transferência das peças para o Museu de São Benedito ou não? Caso a resposta seja negativa, porque não aconteceu? C: A coleção de arte sacra do Espírito Santo, doada ao Iphan pelo Governo do ES, esteve abrigada anteriormente na Capela Santa Luzia, capela particular construída no século XVI por Duarte Lemos e restaurada pelo Iphan nos anos 1940′, quando se encontrava abandonada e parcialmente arruinada. Sob a gestão da UFES, através de convenio com o Iphan, a universidade transferiu a coleção de arte sacra para um cômodo com área absolutamente insuficiente e sem ventilação anexo à área da cozinha original do Solar Monjardim, transformando a capela seiscentista numa galeria de artes vinculada ao Centro de Artes da UFES. O estado de conservação do acervo de arte sacra, apesar de alguns esforços por parte da universidade de restaurar parte da coleção no recém-criado núcleo de conservação e restauração, era crítico. O Iphan local propôs então a transferência da outra parte da coleção para ser restaurada na Igreja do Rosário, que dispunha de área para isso, e cogitou-se instalar ali um museu de arte religiosa, com a coleção de arte sacra e o acervo da irmandade. No processo de coleta e identificação do acervo da irmandade foi ficando evidente que o espaço da Igreja do Rosário não seria suficiente para reunir os dois acervos. Ficou então decidido que a igreja abrigaria apenas o seu acervo, sob a denominação de Museu de São Benedito do Rosário. Na exposição do museu foram então incorporadas, através de empréstimo, duas imagens de santos negros da Coleção de Arte sacra do ES, identificados como sendo do universo da irmandade: Santa Efigênia e São Elesbão. Nos anos 2000′, expirado o convenio com a UFES, o Iphan reassumiu, sucessivamente, a gestão da Capela Santa Luzia e do Museu Solar Monjardim e buscou viabilizar a volta da coleção de arte sacra para a Capela Santa Luzia, o que aconteceu e permaneceu até a criação do Ibram.
E: Encontramos diversas datas de previsão para a inauguração do Museu. Por que isso? C: À época, tivemos muitos problemas com prazos para a entrega dos serviços de restauração dos bens móveis e para a entrega das obras nos acessos, além da compatibilização de agendas das instituições envolvidas. Não me lembro ao certo as particularidades desses adiamentos, mas provavelmente estiveram relacionados às questões acima.
E: Foi realizado algum estudo quando aos visitantes (público alvo)?
C: À época, não foi desenvolvido estudo específico relativo ao potencial público-alvo no âmbito do Iphan. Desconheço se isto ocorreu na prefeitura. Entretanto, além do interesse da provedora da Irmandade de São Benedito do Rosário em reapropriar e apresentar o acervo recuperado para os irmãos, havia o interesse do Iphan e da prefeitura de Vitória em promover o patrimônio cultural e as referências culturais da cidade junto aos professores e estudantes do ensino fundamental e médio e junto ao setor turístico. Navios de cruzeiros internacionais começavam a aportar na cidade e a prefeitura agendava visitas aos pontos turísticos da cidade. A Igreja do Rosário integrava um dos roteiros do Centro. A visitação mais sistemática começou a ocorrer a partir da implantação do projeto Visitar, com o Instituto Goia.
E: Houve algum debate ou preocupação quanto à existência de uma reserva técnica?
C: Sim, embora seja necessário lembrar que a origem desse museu não contou com a profissionalização de uma equipe para sua implantação. Seu caráter de urgência, para tentar o salvamento do acervo, buscou assegurar condições físicas mínimas para a sua preservação e acesso. Constatou-se que os livros da Irmandade tinham sido irremediavelmente danificados e que muitos documentos estavam em estado irrecuperável, mas havia ainda muitos itens de uso nas festas da Irmandade que ficariam guardados, assim como objetos e documentos poderiam vir a ser doados pelos irmãos. Havia ainda a necessidade de um local que pudesse abrigar eventuais pesquisadores e reuniões de trabalho dos mantenedores e gestores da igreja-museu. Assim, para esses usos, destinouse uma sala ampla, ventilada e iluminada, de acesso restrito e fora do fluxo de visitação, no pavimento superior.
E: Houve alguma preocupação quanto à existência do Museu no edifício da igreja e a realização dos ofícios religiosos cotidianos (missas e etc…)?
C: Esta pergunta está de certa forma respondida na resposta à pergunta no. 4. No período de criação do Museu, as práticas religiosas e o funcionamento do museu eram assunto da Irmandade. Tive conhecimento de que posteriormente a Mitra questionou na justiça a propriedade da Igreja, apesar dos registros históricos indicarem que a Irmandade recebeu em doação o terreno e que os irmãos construíram a igreja com seu trabalho, no século XVIII, e a vêm mantendo desde então com seus próprios recursos.
E: Em alguns momentos, percebemos a criação do Museu de Arte Sacra e Devoção de São Benedito como uma forma de preservar não apenar o acervo móvel, mas também o próprio edifício da igreja enquanto patrimônio imóvel. Isso procede? Em algum momento dar “um novo uso” ao espaço foi pensado dessa forma?
C: Não como um “novo uso”; nunca se pretendeu substituir o uso religioso próprio da irmandade transformando a igreja em museu. O que se pretendeu foi agregar a dimensão histórica e cultural abrindo esse patrimônio para outros segmentos da população e desta forma, sim, ampliando seu uso e sua apropriação enquanto patrimônio dos brasileiros, respeitadas as condições, a rotina e as decisões da Irmandade de São Benedito do Rosário. E: Encontramos na documentação um projeto de criação do Museu Capixaba do Negro – MUCANE, na igreja Nª Srª do Rosário. A senhora lembra algo sobre isso?
C: Não me lembro, embora a constituição da Irmandade de São Benedito do Rosário seja de uma grande maioria de negros e seus descendentes. Entretanto, considero a instalação do Mucane no seu atual endereço muito mais adequada por permitir uma abrangência muito maior do que a que as características da Igreja do Rosário permitiriam.
E: Encontramos também um projeto de Museu de São Benedito elaborado pelos historiadores Suely C. Soares, Walace Bonicenha e Carlos Benevides Lima Júnior. Esse projeto foi encomendado pelo IPHAN? A senhora lembra algo sobre isso?
C: Suely e Walace eram alunos do curso de graduação em História, Walace foi o primeiro estagiário do Iphan em Vitória. Fizeram sim, a pedido do Iphan uma proposta que não avançou à época por fatores diversos (inclusive a necessidade de restauro do acervo e a situação institucional do Iphan local).
E: Não encontramos nenhum Projeto (Plano) Museológico, apenas Projetos Expográficos (Museográfico). Algum P. M. foi elaborado no processo de criação do Museu?
C: Não foi elaborado plano museológico para o Museu de São Benedito do Rosário. O alto grau de deterioração dos acervos de bens móveis e agregados pertencentes aos imóveis tombados no final dos anos 1980, exigindo ações imediatas que interrompessem e revertessem esse processo de degradação, somado à absoluta dependência técnica do Iphan local na área de museologia, não suprida nem pela universidade federal, (que, acredito, não conta até hoje com um curso de graduação nessa área), e à necessidade urgente de dar a conhecer esses bens, permitindo sua apropriação pela sociedade mais ampla, parecem ter sido as razões que priorizaram sua restauração e sua museografia naquele momento.
E: Para encerrar, a senhora poderia nos falar um pouco sobre a relação do IPHAN-ES e os museus locais?
C: Era uma relação pontual e assistemática com os museus já existentes até os anos 2000. Havia poucos museus locais naquele período, e a grande maioria se resumia à reunião e exposição de coleções de diferentes temáticas, em diferentes localidades. A rigor, à exceção dos dois museus estaduais, não sei de nenhum deles que fosse constituído nos moldes institucionais sobre o tripé educação, pesquisa e exposição. Diversas prefeituras mantinham casas de cultura e, em Vitória, havia o Museu Solar Monjardim e o Museu de Artes do ES. Havia o Museu do Colono, em Santa Leopoldina, onde o Iphan prestou consultorias técnicas através de solicitação do ministério público. Na verdade, o Iphan local funcionava com uma equipe mínima, com muitas demandas de identificação e restauração de prédios históricos e de bens móveis, buscando sensibilizar, orientar e apoiar iniciativas, mesmo que modestas, em favor da recuperação, do conhecimento e da valorização do patrimônio cultural material e imaterial. Nesse sentido, além do Museu de São Benedito do Rosário, o Iphan estimulou e apoiou tecnicamente a criação do Museu do Convento, no Convento da Penha, e do Museu de Anchieta, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, hoje Santuário de Anchieta, além de organizar exposições de pequenos acervos de outras igrejas tombadas, como a de Reis Magos, em Nova Almeida, e a de São Gonçalo, em
Vitória.
FIM DA ENTREVISTA.