Maria era filha de Juan Orty Y Ortiz e Carolina Darico, chegados à capitania do Espírito Santo em 1601, numa das imigrações promovidas por Felipe II, rei da Espanha, que na época dominava Portugal, após a passagem de Portugal e colônias para o domínio espanhol em 1581. Maria nasceu dois anos depois, em 14 de setembro de 1603, na vila de Nossa Senhora da Vitória – hoje a cidade de Vitória.

Divulgada em diversos meios, inclusive em textos acadêmicos, esta biografia parece não deixar dúvida de que Maria Ortiz realmente existiu no Espírito Santo . Eu mesmo utilizei esta citação em minha monografia, ainda na graduação. Entretanto, o pesquisador que resolve correr atrás dessas informações a fim de encontrar fontes primárias que as confirmem acaba em uma rua sem saída.

Veja abaixo 3 motivos para duvidarmos da existência de Maria Ortiz.

1. As fontes citadas

Um dos principais documentos históricos citados na hora de confirmar a participação de Ortiz na luta contra os holandeses em 1625 é uma suposta “carta-relatório enviada, em junho de 1625, ao Governador Geral do Brasil, Diogo Luis de Oliveira”, cujo texto seria:

Na repulsa dos invasores audaciosos é de justiça destacar a atitude de uma jovem moça que, astuciosamente, retardou o acesso dos invasores à parte alta da vila, por eles visada, permitindo assim, que organizássemos com os homens e elementos de que dispúnhamos, a defesa da sede. Essa jovem se tornou para todos nós um exemplo vivo de decisão, coragem e amor à terra. A ela devemos esse valioso serviço, sem o qual a nossa tarefa seria muito mais difícil e penosa. O seu entusiasmo decidido fez vibrar o dos próprios , paisanos e populares na defesa e perseguição do invasor audaz e traiçoeiro.

SALETTO, Nara. Donatários, colonos, índios e jesuítas: o início da colonização do Espírito Santo. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo. 2011, p.104

Interessado no assunto, já que semana que vem o lançará um vídeo sobre a tentativa de invasão holandesa em nosso canal no Youtube, resolvi buscar o documento na íntegra. O que descobri, entretanto, é que há apenas este fragmento do documento, que se repete de publicação em publicação, sem que haja uma origem. Muitos dos documentos coloniais do Espírito Santo já foram digitalizados ou compilados e, mesmo assim, este documento em sim não pode ser encontrado. De onde viria, então?

Minhas pesquisas me levaram a um artigo escrito em 1949 por Eurípedes Queirós do Vale e que foi publicado recentemente no n.65 da Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Ele foi o primeiro a mencionar o documento e citar o fragmento, ao qual ele teria tido acesso através de um acervo de documentos históricos reunidos pelo Barão de Guandu, João Bernardes de Souza, graças à sua conexão com sua família – de acordo com Paulo Stuck Moraes, em seu livro Nobreza Capixaba, Eurípedes foi casado com a neta do 2º Barão de Guandú, em primeiras núpcias.

Ninguém mais, entretanto, teve acesso a este documento desde então. Outros pesquisadores afirmam que a documentação que permanece na fazenda da  família do Barão limita-se a assuntos da própria fazenda, no século XIX. Como afirmou ao Spirito Sancto a historiadora Juliana Simonato,

Quando estive realizando minhas pesquisas, durante o Mestrado em História Social das Relações Políticas (UFES/2008), foi possível deparar-me com diversos documentos, acondicionados em recipientes de metal e na forma de tubos, nos quais encontrei diversas informações referentes à constituição da fazenda durante o Século XIX, como por exemplo, translado de registro de compras de terras, títulos honoríficos, recibos de , dentre outros. Infelizmente, a documentação referente ao século XVII, mencionada por Eurípedes Queirós do Valle, não se encontrava dentre o acervo que está sob a tutela dos familiares do Barão de Guandú.

Assim, todas as informações que temos como oficiais de Maria Ortiz – a origem e os nomes de seus pais, sua data de nascimento e até o documento que falaria de sua participação, em 1625, na luta contra os holandeses invasores – tem origem em um mesmo autor, cujas fontes sequer podem ser confirmadas.

2. O caso do Governador Geral

Um dos argumentos de Paulo Stuck Moraes que jogariam por terra a originalidade da fonte citada por Eurípedes é o fato de que a carta-relatório que narra os acontecimentos de Vitória teria sido escrita em junho de 1625 e endereçada ao “Governador Geral do Brasil, Diogo Luis de Oliveira”. A data e o remente, entretanto, não parecem bater. Apesar de haver cartas régias enviadas a Diogo Luis de Oliveira pelo menos desde março de 1625, nesta época ele ainda estava em Portugal e não havia tomado posse, de fato, do cargo.

Oliveira teria partido de Lisboa como novo governador do Brasil em 25 de agosto de 1626 e tomado posse do cargo, já na portuguesa, apenas em 28 de dezembro de 1626, o que torna inviável acreditar que tenha de fato existido uma carta endereçada a ele partindo da Capitania do Espírito Santo no ano anterior.

Juntando isso ao fato de que o documento citado por Eurípedes Queirós do Vale nunca foi copiado na íntegra, microfilmado, digitalizado ou sequer visto por outra pessoa que o confirme, não é possível sustentar as informações oriundas daí.

3. O que os documentos realmente falam

Por outro lado, há pelo menos dois documentos históricos conhecidos que narram a batalha de 1625. Ambos podem ser lidos aqui no site do Spirito Sancto:

  • Annua ou Annaes da Provincia do Brazil dos dous anos de 1624, e de 1625, do Antônio Vieira.1Como escreveu João Eurípedes Franklin Leal à Revista de História, “as cartas ânuas eram relatórios que os jesuítas enviavam anualmente para sua sede em Roma, relatando fatos relevantes de sua missão…. O padre Antônio Vieira foi jesuíta, orador sacro e missionário que estimulou a luta contra os invasores holandeses no Brasil. Esta carta ânua foi escrita em 1625, sendo a primeira de autoria de Vieira, e destinava-se a informar aos superiores jesuíticos de Portugal e de Roma (Superior-Geral) os acontecimentos da Capitania do Espírito Santo no período de 1624-1625”.

  • Historia ou Annaes dos feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes desde o seu começo até ao fim do anno de 1636, de Johannes de Laet.2Johannes, ou João de Laet, nasceu nos Países Baixos, filho de um rico comerciante. Foi geógrafo e diretor da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais a partir de 1621. Em sua época, manteve contanto com grandes pensadores, como José Scaliger e Hugo Grócio. Suas principais obras estão ligadas ao seu trabalho na Companhia, que é o caso desta História, onde ele narra as invasões holandesas no Brasil colonial. A tentativa de invasão no Espírito Santo é narrada no livro segundo, ano de 1625.

Uma diferença marcante entre as duas narrativas está no fato de que Antônio Vieira afirma que o ataque aconteceu em 12 de maio de 1625, enquanto João de Laet escreve que os holandeses chegaram a Vitória no dia 12 de março, ou seja, dois meses antes. Porém, a grande semelhança entre as duas histórias deixa claro que houve um equívoco quanto à data.

O mais importante para esta pesquisa é reparar que, nem na visão dos colonos, nem na visão dos invasores, há qualquer menção à personagem de Maria Ortiz. Os autores não escreveram sobre qualquer participação feminina na luta e a única coisa que teria afastado os holandeses seria um tiro de roqueira – também conhecida como canhão-pedreiro ou Camelo, a roqueira disparava projéteis de pedra (normalmente granito) ao invés de ferro – dado pelos defensores protegidos em uma trincheira e liderados por Francisco de Aguiar Coutinho.

Veja o que Vieira escreveu:

por entre o fumo, e perturbação' dos tiros, apparelhárao' sete lanchas com o melhor dos Soldados, e ainda Marinheiros: os quaes saindo das Náos, e saltando livremente em Terra, começárao' a marchar para a estancia do Cappitao' Francisco de Aguiar Coitinho, que tambem o erá da Villa, e Senhor della. Estava aqui huma roqueira (que nao' havia outra na Terra), e tanto que foi vista dos Inimigos, para evitarem o perigo, desfizerao' as fileiras, e arrimando-se todos ás paredes, continuárao' a entrada. Vendo isto o animozo Cappitaõ, manda pôr fogo á roqueira (o que nao' foi debalde), e logo successivamente salta fóra das trincheiras, com alguns poucos, que o seguirão' ; conjecturárao' os Hollandezes, q. tanto ânimo vinha confiado em maior podêr de Gente ; e sem fazer rosto derao' as costas, e largárao' as Armas.

Leia o texto completo

Já Laet, escreveu o seguinte:

Mettida a gente nos bateis, largaram estes para a náo almirante, donde seguiram todos os nossos juntos para terra, e aqui se puzeram em ordem de batalha. Mas, como havia pouco espaço para arrumar toda a gente, o almirante avançou um pouco com oito ou dez fileiras. Os desta praça, informados da chegada dos nossos, se haviam apercebido para resistir, e assestaram um morteiro de bronze contra o caminho, que os nossos tinham de enfiar, e deram-lhe fogo, tanto que nos poderam alcançar. Vendo isso, salta o almirante para o lado, amparando-se atraz de uma casa, e apenas soa o tiro, apresenta-se de novamente, animando a sua gente a dar bravamente sobre o inimigo; mas, pois os officiaes e particularmente os capitães ainda não estavam na frente, nem as fileiras se achavam dispostas, segundo a ordem determinada, estando quase todos os marinheiros adiante, já estes não atendiam ás vozes, e entraram a cuidar de si, receiosos da artilheria. O almirante trabalhou com eles que avançassem, mas embalde, que o medo lhes ia lavrando pelos peitos. Voltaram costas em grande confusão, e recolheram-se aos navios com perda de oito homens, e outros tantos feridos. Na fugida alguns lançaram de si as armas.

Leia o texto completo

Conclusão

Assim, o que podemos concluir de nossa pesquisa é que não há evidências da existência de Maria Ortiz ou de sua participação nos eventos de 1625, pois não há comprovação da existência ou da veracidade dos documentos que sustentam esta posição.

O que podemos afirmar, com certeza, é que há pelo menos dois documentos diferentes de fácil acesso, um holandês e um português, a narrar o ataque holandês daquele ano, e nenhum deles faz qualquer menção à heroína capixaba, o que dificulta ainda mais o caso.

O Spirito Sancto, entretanto, mantém-se aberto e disponível a qualquer novidade sobre a questão, sempre disposto a discutir assuntos da a fim de trazermos à luz, juntos, uma história o mais completa possível.

O Spirito Sancto agradece aos amigos Juliana Simonato e Paulo Stuck Moraes, com quem conversamos sobre o assunto.

 

2 Comments

  1. João Victor Caldari disse:

    Primeiramente: você não procurou os registros nos lugares certos, até então não existia a arquidiocese de Vitória, os documentos eram manipulados pelo Rio de Janeiro e posterior pela diocese de Niterói.
    Segundo: Eu sou descendente dela.

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