Referência

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS. Cartas Avulsas, 1550-1568 (Cartas Jesuíticas, Vol. II). Rio de Janeiro: Officina Industrial Graphica, 1931. p. 194-197. Disponível em: . Acesso em: .

Créditos

Academia Brasileira de Letras

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1558: Traslado de alguns capítulos de cartas do padre Francisco Pires, que hão vindo do Espirito Santo

Trabalhos com os índios. — Baptismo e morte do filho do Gato. — O Governador. — O Cão Grande. — Concerto de um relógio.

A os 20 de Janeiro baptizei o filho do Gato1O Gato, o chefe dos índios alcunhados Maracayás ou gatos bravos. Cf. Simão de Vasconcellos (Op. cit., liv I, pag. 202): “Teve notieia (o Padre Braz Lourenço) que nas partes do Rio de Janeiro andavam em guerras cruéis duas nações delles, chamados uns Temiminós, outros Tamoyos, que se destruiam e comiam uns aos outros. . . Tratou com.. . Vasco Fernandes Coutinho que offereeesse agazalhado ao Principal dos Temiminós, que estava de peior partido e se chamava Maracayá-guaçú, que vem a dizer em a nossa lingua “o grande Gato”. “Aeeeitou o grande Gato o offerecimento, etc.” E adiante (liv. II, 46): “No anno de 1555 vimos a mudança que fez o Grande Gato, principal das povoações dos Temiminós das terras do Rio de Janeiro para as da Capitania do Espirito-Santo. e casei-o com a sua Negra; foram seus padrinhos Duarte de Lemos, Bernardo Pimenta e André Serrão. Foi feito esse officio com pouca soíemnidade, porquanto o índio estava doente e mal poude vir á egreja. Mas si foi pouco fadado o seu novo nascimento, foi mui fadada a sua morte, como em seu logar direi. No principio da quaresma mudamos a oração á noite, para que ficasse mais para outras cousas também necessárias, e depois da oração vimos á collação e acabada lemos lição de um livro espiritual, e praticando della alguns pontos, com isto passamos a hora. No primeiro domingo começou o Padre a pregar com grande fervor e ás sextas-feiras á noite eu com grande tibieza; mas, segundo parece, o Demônio se poz da sua parte em desafio contra nós; estou a dizer que venceu, porque é um antigo pregador e traz nesta terra muitos cegos em sua falsa doutrina; finalmente moveu demandas e nellas muitos negócios entre os Principaes da villa: a alguns se atalhou, outros correm o seu curso e lá hão de chegar. Fazendo outra viagem á aldêa de Gerabaya, como de costume e regra de nosso Padre tenho, me mostrou muita graça e bons desejos de querer a doutrina, mas é tão raramente esta visitação que se não pode fazer nenhum fructo. Elle me deu um formoso pão de cera para que o apresentasse a Nosso Senhor por elle: creio que este dar de luz é pedir luz; rogae a Nosso Senhor, Irmãos meus, que lh’a dê.

Aos dous do mez de Abril morreu Sebastião de Lemos, o filho do Gato, scilicet: á sexta-feira de Lázaro, e quinta feira estivemos com elle, Gonçalo Alvares e o irmão Fabiano, o qual fazia já alguns termos, e no que mostrava e dizia parecia bem Nosso Senhor tel-o escripto no livro da vida e no numero dos predestinados para o seu Reino. No extremo me não achei presente; morreu, segundo dizem, mui bom christão, com o nome de Jesus, nomeando-o muitas vezes, e que abria os braços e se abraçava com uma imagem que lhe tinhamos ali posto; eu lhe havia feito uma cédula, porque elle tinha alguns vestidos bons e outras cousas que, por tudo, chegavam a mais de 40 cruzados e isto á sua conta e contentamento, mas não se usou della por causa do pae; todavia, estando o pae presente, lhe disse que por sua alma e para lhe dizerem missas dessem ao Padre Vigário uma certa peça, a qual o pae depois d’elle morto deu. Fomos buscal-o com grande pompa e solemnidade: primeiramente o Padre Vigário levava um Crucifixo nas mãos coberto de luto, como ás sextas-feiras na quaresma se costuma fazer, e sua cruz diante e a dos meninos, e o Governador na procissão com toda a demais gente da terra, e assim, nós cantando e elles pranteando, o trouxemos á nossa egreja; muito se espantaram e edificaram os índios de ver aquelle concerto que dávamos, que logo na noite seguinte pregou Jaraguay, dizendo que aquella era a verdade e que deviam todos ser bons christãos. Certos dias depois do seu enterramento, lhe fizemos um officio cantado, ao qual esteve presente o pae e alguns dos seus, e o Governador o assentou entre si e seu filho Vasco Fernandes; acabado o officio o levou á sua casa para lhes fazer uma pratica por causa dos Negros, porquanto havia succedido entre ambos uma revolta, scilicet: entre os da terra e os Brancos, e estando eu presente disse ao Sr. Governador que lhe mandasse dizer que, para de todo ser nosso irmão, porque não tratavam da amizade e amor que havia entre elle e os Brancos; já não lhe faltava sinão ser baptizado e casado com sua mulher. Dizendo-lhe assim o lingua, respondeu que muito queria, e sua mulher, que estava presente, o mesmo; disse o Sr. Governador que, porquanto a amava muito, lhe queria fazer uma grande festa no dia do seu baptismo e por este amor queria que tomasse o seu nome e sua mulher o de sua mãe e seus filhos os nomes dos seus, e assim os poz cada um, e assim assentámos em baptizal-o para a festa do Espirito Santo.

Uma das cousas que nesta villa me alegrou foi o Sr. Governador fazer um grande milagre. Estavam os moradores desta villa mui desgostosos e com elle mui differentes por cousas que lhes elle fazia; quiz Nosso Senhor movel-o e mandou chamar a todos aquelles que lhe parecia estarem escandalisados e com boas palavras e mostra de sentimento lhes pediu a todos perdão com protestação que, si a algum havia damnif içado, o satisfaria e que d’ali por diante queria estar bem com todos; etiam uma Negra de que havia alguma suspeita pôz fora e quer casal-a.

Um dos trabalhos que corporalmente cá sentimos, maximé no verão, era ir á aldêa de Maraguay; porque esta terra é muito quente e deleixada e o caminho tinha algumas subidas, já me achei tal, posto que em tempo que andava mal disposto, que não sabia si fosse para diante ou si tornasse para traz; agora estamos fora desse trabalho e merecimento, posto que, si voluntas reputatur pro facto, não o perderemos, porque não deixáramos de ir até morrer, pois era nossa vinha e nos era mandado pela obediência; por causa do negocio que disse, o Governador os mandou vir e ajuntar com estes que estão perto da villa. O Cão grande, irmão do Gato, mudou-se de sua terra para Guarapari, daqui 6 léguas; mandou dizer ao Governador onde queria que se assentasse? mandou-lhe dizer que próximo do mar, para o caso de ser soccorrido quando necessário ; segurou muito esta villa e folgam muito ali com elle os moradores por esta causa. Logo que começar a assentar e fazer suas casas, iremos lá e saberemos si temos algum proveito. Houve por seu conselho vir-se para seu irmão, já está com elle; quer fazer mantimento e casa e logo trazer a mais gente. Vendo o Padre quanta falta de Fé e accrescentamento de maus e torpes costumes por falta de doutrina em os principios, pareceu-lhe bem tomar cargo dos meninos e escola, dos quaes agora é mestre e os ensina com muita caridade, não tão somente a ler, mas, o que é mais e melhor é para sua salvação, ensinando-lhes o caminho do eterno fim glorioso para que foram creados, scilicet: o Padre Nosso, o Credo, etc, por modo de dialogo, e não tão somente aos meninos, que vêm cada dia a uma certa hora á egreja, para a qual hora se tange o sino. Eu creio que, si houvesse, como ha lá em Portugal, corações que se pudessem mover, se moveriam ao amor do Senhor e seu serviço; mas nesta terra tudo é vergonteas novas e mais farpadas, cujo fructo é imperfeito, como são Mamalucos2“Mas nesta terra tudo é vergonteas novas e mais farpadas, cujo fruto é-imperfeito como são Mamalucos”. Boa observação sociológica. O mamaluco, mestiço de indio e branco, era um ser ambiguo como é hoje o mulato, desprezando o selvagem (ou o preto) que já não é mais, e odiando o branco que não é ainda. A nossa sociologia por quatro séculos perturbada, sel-o-á por mais outros tantos, até purgarmos o sangue negro, como já purgamos o sangue indio. A vingança de Cham ha-de demorar..

Acabo de concertar com o desconcertado relógio que temos. O Sr. Vigário negociou o como se ha de pagar, determinando tirar pelo povo para isso uma esmola; o Sr. Governador dará o que falta e temol-o já em casa a aprazimento de todos e com essa condição diziam que davam para isso suas esmolas.

 
Fabio Paiva Reis
Fabio Paiva Reis
Fabio é capixaba, natural de Vitória. Historiador, fez doutorado na Universidade do Minho, em Portugal, e se especializou em História do Espírito Santo Colonial. Fundou este site em 2015 e, no ano seguinte, foi premiado no edital de Educação Patrimonial da Secretaria do Estado da Cultura do Espírito Santo. Hoje é professor de História no Instituto Federal do Espírito Santo - Campus São Mateus.

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