Gerson França é pesquisador, graduando em História pela Universidade Federal do e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Publicou este ensaio originalmente em seu blog pessoal.

Vou te devorar
A tua história incorporar
Espírito Santo Guerreiro
Caprichosamente me levar
Profano canto suburbano
Se transforma em divinal
(…)

Trecho inicial do samba-enredo da Caprichosos de Pilares, no carnaval de 2006, de autoria de José Manfredini, Mauro Speranza e Márcio do Swing, intitulado “Na folia com o Espírito Santo, o Espírito Santo caprichou”.

Em 2006, a escola de samba Caprichosos de Pilares fez uma homenagem ao Estado do Espírito Santo, em seu samba-enredo. Mas essa homenagem resultou em uma polêmica, que repercutiu em terras capixabas. , a tradicional heroína que, com sua valentia e atitude ajudou a repelir uma tentativa de invasão dos holandeses em Vitória, foi retratada em um dos carros alegóricos como se tivesse sido uma cafetina e prostituta. Em efeito cascata, até a água fervente que derramou sobre os invasores que subiam a ladeira, hoje escadaria que leva seu nome, foi complementada por dejetos arremessados sobre os inimigos, esvaziando o “conteúdo dos penicos de sua casa de diversões”[1].

Antes desse enredo e da repercussão que tomou o tema, tive contato com essa versão sobre Maria Ortiz. Ela era propagada, em tom de brincadeira, no meio de alguns artistas e intelectuais com quem tive contato nos primeiros anos da década de 2000; nenhum deles, historiador. Uns tantos acreditavam realmente nisso, mais radicais no revisionismo sobre a personagem. Não tinham, verdade, a intenção de desqualificar a figura da “mulher heroína”, embora o tenham feito. Estavam mais imbuídos daquele espírito desmistificador presente à época, no estilo “Jesus era comunista” ou “Zumbi foi homossexual”. Intentavam quebrar o culto ao herói, tornando as personagens mais humanas. E, daí, teciam simples presunções destituídas de fundamentação documental e histórica.

Mas, afinal, quem foi, e o que foi, Maria Ortiz? Ela é personagem real, como rezam uns, ou uma lenda, como entendem outros? Como foi preservada sua memória e como foi construída a heroína? Nesse artigo, procuro trazer elementos e reflexões sobre isso.

Primeiramente, precisamos contextualizar objetivamente. No início do século XVII Portugal e Espanha viviam o período chamado de União Ibérica (1580-1640), que foi quando ambos os Estados estiveram sob o reinado do mesmo soberano. Os holandeses, inimigos dos espanhóis, passaram a atacar as possessões portuguesas. Em 1624 atacaram e ocuparam Salvador, capital das colônias portuguesas no . No ano seguinte, uma esquadra holandesa penetrou na baía de Vitória, postou-se em frente da então Vila, fez um desembarque e atacou a capital da Capitania do Espírito Santo. Foi nessa ocasião que, segundo a tradição e alguns historiadores, Maria Ortiz teria feito sua aparição na história local. Buscando impedir os invasores que subiam a ladeira onde residia, a mulher derramou água fervente sobre os soldados inimigos em um momento que a defesa local fraquejava. Tal ato animou os defensores que, refeitos, contra-atacaram e puseram o inimigo em debandada. Há versões que aumentam o feito, creditando a vitória dos capixabas e a fuga dos holandeses unicamente à água fervente derramada sobre o comandante das tropas holandesas.

Sobre a invasão e tentativa de ocupação de Vitória pelos holandeses, bem como sobre a luta dos capixabas em defesa de sua terra, há documentação contemporânea aos fatos[2]. São quatro fontes; três portuguesas e uma holandesa:

  • A Carta Annua do padre Antonio Vieira (1626);
  • A Relação Universal de Manuel Severim (1627);
  • A História do frei Vicente do Salvador (1627);
  • E os Annaes de Johannes de Laet ().

Observa-se que as fontes contemporâneas não mencionam Maria Ortiz, nem mulher alguma. Tratam da luta, enaltecem alguns personagens e feitos, mas não citam o episódio que consagrou nossa heroína. Uma das fontes até informa que as mulheres e as crianças deixaram a Vila apressadamente e se refugiaram nos matos e arredores, deixando dúvida se alguma mulher teria ficado no povoado. Assim, como e quando surgiu a versão celebrada nos dias atuais pelos capixabas?

O primeiro documento que cita o fato de uma mulher participando da luta e derramando água fervente sobre os invasores é pouco posterior aos acontecimentos. Foi registrado por Francisco de Britto Freire em sua obra “Nova Lusitânia, História da Guerra Brasílica” (1675). Britto Freire participou, como Almirante da esquadra da Companhia de Comércio, dos acontecimentos finais da guerra contra os holandeses no nordeste do Brasil em /54 e, depois, foi governador da Capitania de Pernambuco entre 1661 e 1664. Neste tempo, coletou documentos e relatos sobre o conflito. Preso por motivos políticos em 1669, escreveu sua obra durante os seis anos que permaneceu detido. Seu trabalho é considerado por Pieter Netscher (um dos mais sérios e metódicos historiadores holandeses que escreveram sobre as guerras com os portugueses) como uma das melhores obras sobre os holandeses no Brasil.

Ao final do texto, transcrevemos a parte do livro de Britto Freire que trata das investidas holandesas. Aqui, colocaremos apenas o trecho que nos interessa:

(…) Ridiculo successo do Almirante Perez (…) tornando em o dia seguinte, a experimentar no segundo combate, o primeiro successo, huma molher Portuguesa, escolheu ao Perez por singularidade na differença do trajo, & lugar da pessoa, para lançarlhe do alto da casa, hum tacho de agoa fervendo sobre a cabeça. Não o pode molestar braço algum varonil, & molestou-o aquela mão feminina.

Pela primeira vez, o fato de uma mulher ter despejado água fervente sobre os invasores é registrado. Britto Freire foi bem criterioso ao escrever sua obra, e não é crível presumir que o mesmo tivesse inventado esse fato. O mais provável é que tenha colhido algum depoimento sobre o acontecido. Nesse caso, o feito da mulher teria ficado guardado na memória dos locais e, mais tarde, foi tombado pela pena do autor. Não há motivo algum para duvidar da boa-fé de Britto Freire. Mas, preservou-se o feito, e esqueceu-se o nome da mulher. Não há a individualização da personagem, e o nome de Maria Ortiz não é citado.

A segunda vez que esse feito é registrado em obra foi em “Istoria delle guerre del regno del Brasil”(1698), de autoria de Giovanni Gioseppe di Santa Teresa. Em seu trabalho, cita a ida de Petrid para Angola, sua arribada no Espírito Santo e o ataque à Vitória, a atuação de “Francesco di Aghiar Coutigno”, dentre outros pormenores. Na parte que trata da mulher que derrama água fervendo, assim escreve:

(…) Onde sdegnato il Petrid della fortuna, e fommamente arrossiro dello scherzo quivi fattogli da questa per mano di una donna Portoghese, la quase salita sopra la muraglia gli getto sopra la lesta un caldaio di acqua collente, che con gran risa de gli assediati, e parimente de i fuoi in estremo lo molestò; se ritirò subito all'armata, e frese indirittura il viaggio verso Olanda.

Observa-se que o episódio, retratado como algo ridículo a ter acometido Pieter Pieterzoom Heyn por Britto Freire, começa a tomar aspecto de galhofa. Daí em diante, quase todos os historiadores que escreveram sobre o tema, e que citaram o feito, repetem mais ou menos a mesma história, ora em tom de escárnio, ora em tom de feito heroico. Mas as obras que versam sobre o acontecido continuam omitindo o nome da mulher. Não há menção à Maria Ortiz.

Aparece Maria Ortiz

Em 1815, Gioseppe di Beauchamp publica sua Histoire du Brésil. Em 1817 e em 1822 teve edições traduzidas para o português. Essa obra também citou o feito da mulher que derramou água fervente sobre os holandeses. Também omitiu o nome da mulher. Mas essa obra teve um papel importante para o resgate dessa história, no Brasil e no Espírito Santo. Livro muito popular, espalhou-se pela elite erudita brasileira, até começar a cair em “desgraça” na década de 1840, acusada de plágio.

Parece que o resgate da história da mulher que derramou água fervente sobre os holandeses, em terras capixabas, foi fruto dessa obra. Tudo leva a crer que esse feito já havia caído no esquecimento dos espírito-santenses. Em 1817, ao publicar sua Memória Estatística da Província do Espírito Santo, Francisco Alberto Rubim assim trata do ataque holandês de 1625:

Em Março de 1625 deu fundo na barra uma armada holandesa de 8 velas. Fizeram seu embarque e se fortificaram em diferentes pontos da costa e ilhas. Nos dias 12 e 14 atacaram a vila e foram repelidos, de que resultou retirarem-se vergonhosamente. Não consta o nome do comandante holandês, detalhes destes combates, nem quais foram os Portugueses que mais se distinguiram; e só consta que a câmara por muitos anos no dia 6 de Agosto fazia uma festa em ação de graças pela vitória alcançada aos Holandeses.

Nota-se, nesse trecho, que os capixabas do início do século XIX não conheciam mais os pormenores dos fatos ocorridos em 1625. Diz, textualmente, que não se sabia “quais foram os portugueses que mais se distinguiram” na batalha. Essa passagem é sintomática para que possamos afirmar, com certa segurança, que a heroína Maria Ortiz não era lembrada naquela época.

Quarenta anos depois, em , o jornal Correio da Victoria repetia a versão, denotando que até àquele ano havia parcela da elite erudita capixaba que não conhecia a história detalhada da batalha de 1825. Mas o livro de Beauchamp, rico em informações e ao retratar o feito da mulher, despertou o interesse dos capixabas por encontrarem fontes para a produção ou confirmação de sua história. E a obra de Britto Freire, que fundamentou primeiro a história da mulher, passou a ser conhecida por alguns historiadores locais.

É nessa conjuntura que é publicada a obra de José Marcellino Pereira de Vasconcellos, em 1858, intitulada de Ensaio sobre a História e Estatística da Província do Espírito Santo. Vasconcellos, ao escrever sobre o episódio de 1625, resgata a obra de Britto Freire e menciona a Carta Ânua do padre Vieira, transcrita por ele em seu livro. Assim escreve sobre o episódio da mulher:

Por este tempo cruzavão os hollandezes os nossos mares, e pretenderão assenhorear-se de nossas terras em differentes pontos; e pois em maio de 1625 o almirante Patrid com uma armada de oito véllas deu fundo na barra da capitania, fez seu desembarque, e se fortificou em differentes pontos da costa e ilhas; – mas nos dias 12 e 14, em que se abrio um combate, por atacarem a villa, forão repellidos, retirando-se vergonhosamente. Refere Brito Freire, que no segundo dia, em que os hollandezes accommetterão a villa com maior intrepidez, experimentarião de certo melhor fortuna, si uma animosa mulher, posta á janella de uma casa aguardando a passagem do chefe, não derramasse sobre este uma caldeira d'agua fervente, que o fez retroceder, e desanimar a sua gente, declarando-se a victoria pelos habitantes com perda de 38 dos contrarios, que forão mortos, e 44 feridos. Chamava-se esta mulher Maria Urtiz. (…)

Pela primeira vez aparece o nome da heroína capixaba, ainda com a grafia “Urtiz”. Mas, ao nominar e individualizar a mulher da história de Britto Freire, Vasconcellos não cita a fonte que bebeu. E esse fato destoa do restante de sua obra, que cita documentos e referências para fundamentar seus escritos. Assim, onde o autor foi buscar o nome da mulher?

Três anos depois, em 1861, um outro historiador, Braz da Costa Rubim, publica o livro Memorias Historicas e Documentadas da Provincia do Espirito Santo. Farto de documentação, o trabalho descreve em detalhes o ataque holandês de 1625, fundamentado em algumas das fontes já citadas. Mas omite a história da mulher, e muito menos cita o nome dela. Assim escreve:

(…) O Brasil debaixo do domínio de Castella, por ter seguido a mesma sorte de Portugal, estava como que abandonado e entregue às invasões dos hollandezes que conseguiram apoderar-se da Bahia, inquietando e saqueando outras povoações do littoral.

Uma frota composta de oito náos sob as ordens de um dito almirante Petrid deu fundo na barra da bahia do Espirito Santo, e desembarcou 300 homens que se fortificaram em differentes pontos da praia e das ilhas. Os moradores assaltados assim de improviso abandonaram as casas, e fugiram para as roças. O donatário mandou tocar a rebate, e com a força que pôde juntar, que consistia em poucas espingardas, repelliu o ataque que o inimigo deu á villa no dia 12 de março de 1625. Dous dias depois carregaram com mais força, mas a esse tempo, entrando Salvador Corrêa de Sá e Benevides, que do Rio de Janeiro sahira com duzentos homens em tres canoas de guerra e dous caravellões á custa de seu pai Martim de Sá para acudir á Bahia, fez desembarcar quarenta portuguezes e setenta indios, e unidos estes á gente da terra guarneceram as tronqueiras defensivas da villa, e receberam os invasores com tanta valentia, que ao cabo de um quarto de hora, tanto durou a peleja, os repelliram com alguma perda, havendo da parte dos defensores um só morto. Vendo os aggressores que não podiam apoderar-se da villa, resolveram assaltar as roças; penetraram na bahia com quatro lanchas, e posto que nesta façanha aprisionassem algumas canôas e um caravellão de Salvador Corrêa, quasi desguarnecido, cahiram depois em uma cilada que o mesmo lhes armou, que esperando-os á volta, accommetteu a lancha principal de que ficaram só dous com vida, e as outras com grande perda se reconheram á esquadra. Escarmentados tambem por este lado, com despeito de sahirem mal desta refrega, vingaram-se nos seguintes dias em metter na villa uma grande quantidade de pelouros, que nenhum damno de consideração causaram; e ao cabo de oito dias fizeram-se de vella.

Daí, retornamos à pergunta: onde Vasconcellos buscou o nome da mulher? Em que documento, já que não cita fonte? Teria ele resgatado o nome da mulher em alguma tradição popular que, passados mais de duzentos anos, ainda existia entre a população de Vitória? Essa última hipótese, que talvez seria a única a fundamentar a “descoberta” do nome da mulher, não parece verossímil. Isso porque um outro historiador, seu contemporâneo, ao publicar seu trabalho, não cita a passagem da mulher. Se essa tradição estivesse viva dentre a população capixaba, dificilmente Costa Rubim a teria omitido ao descrever tão detalhadamente quanto pode o ataque dos holandeses no Espírito Santo.

Outros são os indícios de que a tradição da mulher que derramou água fervente, bem como seu nome, não existia dentre os locais. Para além da ignorância de Rubim e Costa Rubim sobre o fato, encontramos fragmentos de que esta mulher chamada Maria Ortiz só começou a ser celebrada anos após à publicação da obra de Vasconcellos. Em 1868, dez anos após a publicação do livro de Vasconcellos, o Jornal da Victoria assim se expressava, embora misturasse a história de Britto Freire de 1625 com o segundo ataque holandês em 1640:

Fazem hoje 228 anos que uma esquadra hollandeza (…), segundo alguns historiadores (…), deu fundo na barra desta cidade, então vila. (…) Louvou à (…), bem como uma mulher (e que não lhe consignaram o nome!) que de um sótão (…) lançou sobre o comandante da tropa holandeza um taxo de água a ferver.

Ora, como poderia o jornal, dez anos depois da publicação de Vasconcellos, ao tratar de lembrar do ataque holandês, declarar que a história não guardou o nome da heroína, se esse nome ainda fosse lembrado pela população local? Não parece nem um pouco razoável que Vasconcellos tenha colhido o nome de Maria Ortiz junto à qualquer tradição popular. Ele não registrou um nome festejado; mas sim, resgatou um nome esquecido. Só resta saber: aonde, e com que fundamentação, fez esse resgate?

Outro fator que abona a presunção de que não havia a tradição de Maria Ortiz à época pode ser retirado da informação de Afonso Cláudio, em sua obra sobre literatura, publicada em 1912. Afonso Cláudio nasceu em 1859, e tinha quase vinte anos de idade quando o nome de Maria Ortiz se popularizou. Em seu trabalho, o autor questionava a veracidade da história de Maria Ortiz usando, dentre outros argumentos, a ausência de tradição anterior. E Afonso Cláudio passou boa parte de sua infância e adolescência em Vitória; assim, era um contemporâneo e local a atestar a inexistência de que havia uma tradição que festejava Maria Ortiz em sua época.

Durante as décadas de 1840, 1850, 1860 e a 1870 até seus últimos anos, ao lembrar os ataques holandeses, todos os jornais de Vitória que pesquisei omitiram o nome da mulher que despejou água fervente sobre o comandante holandês. Somente uma vez, em 1859, após a publicação da obra de Vasconcellos, é que o nome de Maria Ortiz foi citado em alguma publicação jornalística. E o foi feito em uma cartilha elaborada pelo próprio Vasconcellos, denominada Cathecismo Histórico e Político, para uso nas escolas de primeiras letras da Província do Espírito Santo. Assim está:

Pergunta: A história conserva os nomes dos heróes, que figurão nessas contendas?

Resposta: Não todos, como devêra – mas a par do de Salvador Correia de Sá e Benavides, encontra-se o de Maria Ortiz, animosa mulher (…).

Mas, se não houvera tradição que fundamentasse o nome de Maria Ortiz como a mulher do tacho de água fervente, em breve essa tradição seria criada. Vasconcellos lançou a semente. No final da década de 1870, as excelentes obras positivistas da História do Espírito Santo de Misael Penna () e de Basílio Daemon (1879) trariam a história de Maria Ortiz, agora não só nominada e individualizada, mas também tornada protagonista e heroína.

A fonte usada por ambos para nominar a mulher do tacho? A obra de Vasconcellos.

Lendária ou Verdadeira?

Na década de 1880 o nome de Maria Ortiz se popularizou. Ela transformou-se em heroína do povo capixaba. Vasconcellos, o homem que resgatou seu nome, havia falecido em 1874, no Rio de Janeiro. As obras de Penna e Daemon sedimentavam-se como bíblias da nossa história. O espírito de resgate e de construção da história capixaba crescia. Logo se imiscuiu nos eruditos da e do jornalismo. Discursos e reportagens elevavam Maria Ortiz à condição de grande heroína que expulsou os holandeses. A mulher do tacho passou a ser comparada com outros heróis: “a Judith capixaba”, “a Anna Fernandes espírito-santense”. Ao final da década de 1870 e durante a década de 1880, as ruas de Vitória começaram a perder seus nomes tradicionais antigos, e receberam nomes de personalidades locais e nacionais. O próprio José Marcelino Vasconcellos seria homenageado com a nomeação da antiga Rua Grande, que tomou seu nome.

Em tom de deboche, e considerando que apenas os nomes de personalidades políticas mais recentes e ligadas ao poder estavam sendo homenageados na nomeação das ruas, o Jornal de Vitória brinca, em 1881:

“Mais uma atleta! Maria Ortiz!

Esta heroína festejada pelos historiadores, a mulher destemida que corajosa e valentemente muito influiu na expulsão dos temidos holandeses (…) foi também infeliz, não mereceu o seu nome a mais pequena prova de reconhecimento da representante do município!

A casa, a rua, deve seu nome! Nem uma pintura!”

Não que esta galhofa tenha surtido efeito, mas em 24 de setembro de 1885, em sessão da Câmara Municipal de Vitória, foi aprovada a proposta apresentada pelo vereador Passos Costa Jr, “denominando a Ladeira Municipal : Ladeira de Maria Urtiz, nome da celebrada heroína espírito-santense dos tempos coloniais”. Desde então a ladeira, hoje escadaria, mantém o nome “Maria Ortiz”.

Um ano antes, algum pesquisador anônimo cuidou de pesquisar a biografia de Maria Ortiz e publicou suas conclusões no jornal Folha da Vitória. Sem citar fontes, sem descobrir os nomes dos pais da heroína, sem encontrar uma suposta data de nascimento, e citando apenas as histórias já conhecidas sobre a mulher do tacho, o pesquisador informa que Maria Ortiz era descendente de um certo Francisco Gomes Pereira, português que teve terras no Espírito Santo no século XVI e que participou de algumas lutas contra estrangeiros em outras Capitanias.

A corajosa mulher de Britto Freire, agora individualizada em Maria Ortiz, tomava novas formas.

Revisionismos

Esse superenaltecimento da personagem, cumulado com uma série de imprecisões sobre a história da mesma, acabou resultando no ceticismo de parcela dos intelectuais capixabas do início do século XX. Tornada protagonista, a individualização da mulher de Britto Freite acabou levando à contestação da própria história que este registrou. A associação da imprecisa Maria Ortiz com a história da mulher do tacho de água fervente fez com que alguns historiadores começassem a duvidar da veracidade não só da existência de Maria Ortiz, mas da própria veracidade do episódio da mulher em 1625.

Em 1908, uma matéria do Diário da Manhã reflete o essa problematização. Nessa época, a história de Maria Ortiz já era considerada tradicional. Embora o jornalista reconheça que a história confirmada por Britto Freire tenha sido inspirada em algum cronista da Capitania que lhe teria narrado o fato, não lhe dá crédito como fato histórico para sua autenticidade. A transformação de Maria Ortiz em heroína responsável pela expulsão dos holandeses, bem como a transmutação da história de Britto Freire em histórias mais fantásticas e associadas ao nome da personagem, levam o jornalista a afirmar que essa história era um mito: “Tal é a lenda de Maria Ortiz, que fez ganhar uma batalha com um tacho de água quente”.

Em 1912, Afonso Cláudio, em sua obra História da Literatura Espírito-santense, entendeu que a história de Maria Ortiz seria apenas uma lenda. Fundamentou sua presunção dizendo que inexistia tradição anterior, e seu entendimento reverberou no meio intelectual; a posição de que a história era um mito tomava força.

A fundação do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo (IHGES), em 1916, traria mais seriedade e métodos na análise da figura de Maria Ortiz. A demolição da casa que era identificada como sendo a edificação onde residiu a personagem, ocorrida em 11 de abril de 1917 “para embelezamento e higiene da cidade”, ajudou a criar um clima de que a história estava se perdendo e que deveria ser salvaguardada. O interesse pela personagem tomou novo corpo. Em 1924, o IHGES estimulava pesquisadores a escreverem e pesquisarem sobre a biografia de Maria Ortiz. A belle epoque capixaba chegava ao auge, e em 1926 projetava-se a construção de um monumento em homenagem à heroína. Historiadores e memorialistas buscavam fontes que pudessem fundamentar a existência de Maria Ortiz, bem como a história narrada por Britto Freire. Os estudiosos formavam suas convicções; uns, mais céticos, colocavam em dúvida a questão, embora sem desqualificá-la como possibilidade; outros, convictos de que a história era verdadeira, buscavam fundamentá-la por meios quaisquer. “Nessa luta que seu deu o fato, verídico para alguns e lendário para outros, mas assinalado por Brito Freire, da heroína Maria Ortiz”, assinalava um intelectual em 1919.

Aproximava-se a data da celebração do IV centenário da colonização do solo espírito-santense, e esse fato também estimulou pesquisas e estudos de historiadores sérios, como Mario Aristides Freire. Em 1945, esse autor que se debruçou sobre a problemática de Maria Ortiz publicou seu livro A Capitania do Espírito Santo. Com cuidado de um historiador preocupado com os métodos, Mario Freire promoveu criterioso revisionismo sobre a história do Espírito Santo, e tratou da questão de Maria Ortiz de forma crítica, não afirmando sua veracidade, mas não descartando sua possibilidade. Fernando Achiamé, ao comentar a reedição da obra de Freire em 2005, atesta a forma responsável com que Freire documentou seu trabalho e revisou a história capixaba.

A Prova: Mas é verdade?

A obra de Mario Freire, como disse, não tomava uma posição definida, de atestar ou negar a autenticidade da história de Maria Ortiz. Desqualificava os fundamentos de negação da obra de Afonso Cláudio, mas deixava uma interrogação sobre a veracidade do acontecimento. Essa dúvida, porém, acabava por deixar em suspenso uma definição sobre a real existência da heroína. Até então, ninguém havia conseguido provar, com documentos, a existência de Maria Ortiz. A problemática continuava, portanto, em aberto, servindo como argumentos para os que atestavam o feito como lendário.

E é nessa conjuntura que aparece Eurípedes Queiróz do Valle. Dois anos depois da publicação do livro de Mario Aristides Freire, em 1947, Queiróz do Valle escreveu um artigo denominado Maria Ortiz não é uma Lenda. Ele teria, finalmente, encontrado documentos que provavam a existência da heroína capixaba. Fundamentava sua posição com fontes que, segundo ele, teriam sido coletadas por João Bernandes de Sousa, o Barão do Guandu. Falecido o Barão, esses documentos teriam ficado por muitos anos guardados em baús na sua fazenda. Tendo desposado uma neta da viúva do Barão, Queiróz do Valle teria tido acesso à parte desses documentos e, com eles, havia conseguido detalhes sobre a vida de Maria Ortiz: sua filiação, quando seus pais espanhóis vieram para o Brasil, a data de nascimento da heroína e as datas de óbito de Maria e de sua mãe. Ainda segundo Queiróz do Valle, havia uma carta remetida pelo governador do Espírito Santo ao governador Geral, a qual ele não teve acesso na íntegra, que tinha um fragmento com o seguinte teor:

Na repulsa dos invasores audaciosos é de justiça destacar a atitude de uma jovem moça que, astuciosamente, retardou o acesso dos invasores à parte alta da vila, por eles visada, permitindo assim, que organizássemos com os homens e elementos de que dispúnhamos, a defesa da sede. Essa jovem se tornou para todos nós um exemplo vivo de decisão, coragem e amor à terra. A ela devemos esse valioso serviço, sem o qual a nossa tarefa seria muito mais difícil e penosa. O seu entusiasmo decidido fez vibrar o dos próprios soldados, paisanos e populares na defesa e perseguição do invasor audaz e traiçoeiro

Diante de tamanho detalhe, com datas precisas e até uma carta, tudo levava a crer que a existência de Maria Ortiz, e a veracidade de seu feito, eram verdadeiros. Mas aí, começaram as dúvidas sobre a autenticidade dessas fontes; principalmente, no que toca à carta. Segundo Queirós do Valle, uma cópia autêntica dessa “carta-relatório” teria sido entregue pelo Barão de Guandu, em 1897, ao seu amigo Reynaldo do Souto Machado. Este, posteriormente, remeteu a cópia da carta ao Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, para melhor guardá-la. O Barão faleceu em 1899, dois anos depois de entregar a cópia autêntica. Desde então, ninguém mais viu tal carta. Os que a procuraram nos baús do Barão, não a encontraram; grande parte do material havia sido destruído pela ação do tempo, de traças e cupins.

A contestação da autenticidade dessa carta adveio devido às suas incongruências, aliada ao fato de que o original ou a cópia autenticada nunca terem sido trazidas à luz. Primeiramente, Queiróz do Valle informou que a Carta-Relatório havia sido escrita pelo Capitão-mor Guedes, em junho de 1625. O problema é que João Dias Guedes era governador do Espírito Santo quando do ataque holandês de 1640. Assim, Queiróz do Valle, pouco depois, retificou a autoria da carta, imputando-a à Francisco de Aguiar Coutinho, capitão e donatário do Espírito Santo quando da investida de 1625. Outra incongruência ocorre, porém, em relação ao receptor da carta: informa o descobridor do documento que a correspondência foi enviada ao governador-geral Diogo Luís de Oliveira; mas, nessa época, este ainda não era o governador-geral do Brasil.

A análise do texto de Queiróz do Valle, levadas a efeito por Paulo Stuck e Getúlio Neves, do IHGES, deixam sérias dúvidas sobre a autenticidade dessa Carta-Relatório nunca encontrada e só citada. Me inclino nessa mesma vertente, por todos os fundamentos aqui postos. Assim, a não ser que alguém encontre essa cópia autenticada que supostamente está no Arquivo Nacional, não podemos dar crédito à autenticidade dessa carta.

Todavia, a riqueza de detalhes em relação à data da chegada dos pais de Maria Ortiz e ao dia de seu nascimento e morte nos fazem refletir sobre a existência dessa mulher. Teria ele inventado essas datas? A análise do IHGES informa que esses dados foram obtidos, ou confirmados, no Arquivo de Imigração (Imigração Hespanhola para o Brasil – Decênio 1595-1605). Não temos nenhum motivo para questionar essa informação.

Conclusões

Mas, enfim, qual é a conclusão, após toda essa exposição?

Primeiramente, em relação ao ataque holandês à Vitória, em 1625. É fato histórico, comprovado por diversas fontes, conforme demonstrado.

Quanto ao fato narrado por Britto Freire. Considerando a dedicação na produção de sua obra e as palavras de abono de especialistas na temática, acreditamos que o mesmo colheu essa informação através de algum cronista ou relato de quem esteve presente, ou ouviu de quem esteve presente. Não teria tido nenhum motivo para inventar esse fato. Assim, devido à quase contemporaneidade de sua obra, inclino-me a acreditar em sua veracidade. Tal fato provavelmente ocorreu, e foi fixado na memória dos contemporâneos. Trinta, ou quarenta anos depois, Britto Freire o colheu.

Nesse caso, em minha opinião, é verdadeira a história de uma mulher que despejou um tacho de água fervente sobre os soldados, ou sobre o comandante da tropa holandesa, quando estes investiam contra a Vila de Vitória. Não é nem um pouco inverossímil, apesar de podermos nos perguntar o porquê da mulher não ter se evadido da Vila, como fizeram as mulheres e crianças segundo uma das fontes primárias. Tal feito, obviamente, não seria o suficiente para bater os holandeses, como a crônica posterior acabou dizendo em sua elevação da heroína. Aquele seria apenas um, dentre tantos, dos atos isolados de abnegação e de coragem no curso daquela batalha; mas que, talvez, tenha sido fixado na memória contemporânea pelo fato inusitado e por tratar-se de uma mulher.

Quando à firmação de uma tradição que perpassou os tempos por mais de duzentos anos, até que foi depois registrada por José Marcelino Vasconcellos, não sou inclinado a acreditar. Afinal, como demonstrado, no início do século XIX os capixabas não conheciam os protagonistas e os heróis da batalha de 1625. Não temos a mais vaga ideia de como Vasconcellos encontrou o nome que grafou como Maria Urtiz. Ou o conseguiu com alguma família que guardava essa história, o que não creio ser muito provável, ou conseguiu folheando algum arquivo de Igreja em busca de algum nome que pudesse usar para personalizar e individualizar a mulher anônima que, em 1625, despejou a água fervente sobre os holandeses. Tal fato seria possível, caso reste comprovado que uma certa Maria Ortiz, nascida no Espírito Santo e filha de pais espanhóis, realmente tenha existido. Infelizmente, porém, diante da ausência de fundamentação por parte de Vasconcellos, e diante da ausência de documentos, não podemos afirmar que, caso exista Maria Ortiz, esta seja a mesma mulher que esteve na peleja de 1625.

Quanto à existência de uma mulher chamada de Maria Ortiz, nascida no Espírito Santo, e diante da riqueza de detalhes levantadas por Queiróz do Valle sobre seus pais e as datas de seu nascimento e óbito, bem como a referência de um Arquivo de Imigração, sou inclinado a acreditar na veracidade. Isso porque não seria tão difícil para alguém verificar se esses dados são verdadeiros, uma vez que foram provavelmente coletados em um Arquivo que, imagino, ainda pode ser consultado. E nada impediria que essa Maria Ortiz fosse, sim, a mulher anônima de Britto Freire em 1625.

Quanto à Carta-Relatório, trazida a luz num momento de dúvida não só sobre a existência de Maria Ortiz, mas também, por associação, sobre a veracidade do feito narrado por Britto Freire, sou muito cético. Não creio que uma prova tão inconteste, em um momento que a história de Maria Ortiz começou a ser classificada como sendo uma lenda, ficasse relegada a mofar guardada em um baú. Quando o Barão de Guandu faleceu, em 1899, dois anos depois de ter entregado a suposta cópia autenticada da Carta-Relatório, a questão de Maria Ortiz ser real ou lendária já estava germinando no meio intelectual capixaba. Bastaria apresentá-la para dirimir quaisquer dúvidas sobre a heroína. Mas essa carta, ao contrário, teria ficado na escuridão por mais de quarenta anos, até ser revelada por Queiróz do Valle. Sem falar que, após a criação do IHGES em 1916, houve enorme estímulo público para a produção de uma biografia da heroína. Assim, não acredito na veracidade dessa carta. Se, acaso existir, imagino que seja apenas um fragmento de alguma crônica fictícia que foi escrita por alguém; talvez feita pelo próprio Barão de Guandu.

Diante de tantas palavras, para mim resta claro que existiu uma mulher, presente naquele dia de 1625, que juntamente com os outros defensores da Vila de Vitória praticou um ato de heroísmo; e que tal feito ficou guardado na memória dos contemporâneos, até que foi colhido por Britto Freire cerca de 30 ou 40 anos depois. Também acredito que naquela época havia uma mulher chamada Maria Ortiz que, porém, não sabemos se era a mulher que derramou a água fervente, ou se teria se evadido da Vila como fizeram as mulheres e crianças.

Mas não importa. Seja a mulher anônima “a” Maria Ortiz, ou seja outra, e considerando que o tempo já consagrou como sinônimo de heroína o nome citado, temos certamente “uma” Maria Ortiz que, com denodo, ajudou os defensores da Vila de Vitória derramando um tacho de água fervente em cima dos inimigos holandeses.

Fontes Históricas

 

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