1563: De gestis Mendi de Saa (Feitos de Mem de Sá), de José de Anchieta

 

  • Descrição

 

Nesta obra, uma epopeia atribuída ao padre José de Anchieta, o autor narra de forma épica a história de Mem de Sá, o terceiro Governador Geral do Brasil (de 3 de janeiro de 1558 a 2 de março de 1572). Destacamos abaixo o Livro 1, que conta especificamente sobre os acontecimentos da vida de Fernão de Sá, filho do governador, que morreu em batalha contra indígenas no Rio Cricaré (ou São Mateus), no norte do Espírito Santo.

 

  • Fragmento

 

LIVRO 1

As glórias do Pai celeste e sua força divina
teu nome, ó Cristo Rei, e teus feitos gloriosos
começarei a cantar. Num arrojo gigante,
empreenderei a celebrar em versos tuas magnas empresas.
Pois há pouco tua força descerrou uma aurora
por entre a escuridão das regiões brasileiras,
que o úmido Sul encharca com furiosas rajadas.
Esse vento impele nimbos e arma tremendas borrascas
nos altos mares, e cobre com véus de névoas os campos;
fustigando com frio a nudeza das gentes.

Já os astros que orvalharam o mundo oprimido
brilham de luz mais fulgente, e o sol conduz o seu carro
no límpido espaço e, com novos raios, do céu afugenta
nuvens densas, dissipa névoas e seca o solo embebido
de longas chuvas e, todo-luz em seu disco brilhante
enche de claridade as trevas do mundo.


Tu, ó Jesus, ó clara luz do firmamento sereno,
ó fulgor sem ocaso, ó imagem do brilho paterno,
ilumina-me a mente cega, aclara-me a alma
com esplêndidos lampejos. Tu és a fonte ubertosa
donde, em torrentes, se inebriam os habitantes celestes.
Fecunda meu coração de copioso orvalho e derrama
sobre mim fontes vitais, ondas de vida:
Inunda meu peito árido com teus raios divinos:
Assim cantarei os prodígios que teu braço potente
há pouco operou em favor da gente brasileira,
quando fez raiar, rasgando as trevas do inferno,
na arcada celeste, esplendoroso arrebol.

Envolta, há séculos, no horror da escuridão idolátrica,
houve nas terras do Sul uma nação que dobrara a cabeça
ao jugo do tirano infernal, e levava uma vida
vazia de luz divina. Imersa na mais triste miséria,
soberba, desenfreada, cruel, atroz, sanguinária,
mestra em trespassar a vítima com a seta ligeira,
mais feroz do que o tigre, mais voraz que o lobo,
mais assanhada que o lebréu, mais audaz que o leão,
saciava o ávido ventre com carnes humanas.
Por muito tempo tramou emboscadas: seguia,
no seu viver de feras, o exemplo do rei dos infernos,
que por primeiro trouxe a morte ao mundo, enganando
nossos primeiros pais. Dilacerava os corpos de muitos,
com atrozes tormentos, e, embriagada de furor e soberba
ia enlutando os povos cristãos com mortes freqüentes.
Mas um dia o pai onipotente volveu os olhares
dos reinos da luz à noite das regiões brasileiras,
às terras que suavam, em borbotões, sangue humano.
Então mandou-lhes um heróis das plagas do Norte,
um heróis que vingasse os crimes nefandos,
que banisse as discórdias, freiasse o assassínio,
bárbaro e contínuo, acabasse com as guerras horrendas,
abrandasse os peitos ferozes e não sofresse impassível
cevar-se em sangue de irmãos queixadas humanas.

E já trezentos e doze lustros o tempo volvia.
depois que o Criador dos astros, feito homem,
saíra do seio da Virgem Maria impoluta,
iluminado de esplêndidos fulgores a terra,
sepultada, há séculos, no negror do pecado.
Eis que, liberta dos perigos do mar e de há muito esperada,
uma esquadra fundeia na baía a que todos os Santos
legaram o nome. Trazia, salvo das fauces do oceano,
um singular herói, de extraordinária coragem,
Mem, que do sangue de nobres antepassados
e de seiva ilustre de longa ascendência
herdara o sobrenome de Sá. Superiores aos anos,
ornam-lhe o rosto barbas brancas e majestosas:
alegres as feições, sombreadas de senil gravidade,
vivos os olhos, másculo o arcabouço do corpo,
frescas ainda, como de moço, as forças de adulto.
Muito mais excelente é a alma: pois lha poliram
vasta ciência, com a experiência longa do mundo,
e a arte da palavra bela. Arraigado no seio
traz um amor de Deus, santo, filial, verdadeiro
e a fé de Cristo jamais desmentida. No peito,
incendiado pelo sopro divino, ferve-lhe o zelo
de arrancar as almas brasílicas às cadeias do inferno.

Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! quanto bem trarás a seus povos
abandonados! com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!
Mas muitas lágrimas doridas a primeira refrega
custar-te-á. Nela tombará um filho querido
varado de setas, e tingirá as praias de sangue
inda jovem, lançando às auras o tênue sopro da vida.
Tu porém leva sempre ante os olhos a glória
do Pai celeste: nem males nem a desgraça te dobrem!
Para sempre a morte ser-lhe-á mãe da vida
com a bela alma acesa no amor da fé verdadeira
arrostará a morte que o sublimará à mansão da beleza.
Ainda as brônzeas proas não tinham ferrado
o litoral. Depois dos trabalhos do mar, muitos e vários,
deixaram a costa africana, zona que o sol esbraseia.
Ainda para lá, o céu adverso e as correntes marítimas
os retornam com fúria aos fustigos do vento:
enquanto ferozes guerras e cruéis injustiças,
causa de tantas dores, esperam a energia do chefe.
Lá ao longe, cultivam terra feraz uns poucos colonos,
Cingidos em redor de altos montes e praias rochosas,
por onde o Sul chuvoso solta as rédeas em fúria,
ergue ondas revoltas, envolve em névoas, mares e céus
e varre com turbilhões de nuvens os campos.
Deu à terra seu próprio nome o Espírito Santo.
Habitam-na portugueses. Guerras horrendas
desfecha sobre ela o Tamoio feroz: é este o nome
que a fera tribo herdou dos avós. Inúmeros danos
causa por toda a parte, talando as culturas em fruto
e arrebatando os homens. Afastam-se altivos com a presa
e fartam-se de sangue humano os ávidos ventres.
eis que se ajuntam, vindos de várias paragens,
em magotes cerrados, para arruinar para sempre
as aldeias cristãs, ferve-lhes nas veias a raiva
a louca paixão da guerra e o apetite da carne
humana, batem os corações em fúrias amentes.
Se o braço de Deus não impede esses aprestos ferozes
com o socorro celeste, senão dispensa essas tribos altivas
que vibram ao incêndio da guerra e ao faro do sangue,
em breve a ímpia guerra tudo terá conspurcado
e encharcada se verá a terra no sangue dos justos.

Transposto finalmente o oceano, fundeiam no porto.
Sabe então o valente chefe que cruas guerras se aprestam
contra os cristãos, tribos ferozes se insurgem
de toda a parte, decididas de uma vez para sempre
a ferir, matar, devorar a todos os brancos.
O primeiro cuidado do chefe foi erguer logo a mente
ao Pai celeste e revolvendo em silêncio todos esses sucessos
implorar para os sitiados o auxílio que desce
copioso do alto: pois a clemência onipotente, vencida
pela prece dos filhos, sobre eles se inclina piedosa.

Escolhe depois duas caravelas da armada
e manda equipá-las. Envia Fernão à peleja,
seu filho querido, ainda na primavera da vida,
jovem de coração varonil, alma plasmada
nos moldes paternos, enche-lhe o coração de conselhos,
e diz-lhe: “aprende, filho, desde os anos mais tenros,
a buscar no trabalho as virtudes e a glória,
não honras humanas: pois que haverá sobre a terra
capaz de encher-te a alma?” No coração insculpido
leva o nome de Deus, e, na chama da fé abrasado,
onde quer que apertem os trabalhos da guerra,
arroja o dique do peito à maldade furiosa.
Vês como gentes cruéis em hordas imensas preparam
aos Cristãos batalhas ferozes. De morte humilhante
ameaçam agora as cabeças dos pobres colonos,
quais tigres cruéis em redor da preia lanhada
sorvendo com fauces sedentas o sangue inocente.
Que esperança ou que alívio resta ainda aos sitiados?
Donde tirar auxílio? com que forças enfrentar inimigo
tão sanguinário? com que esforço, tão poucos
poderão repelir das aldeias as ondas que avançam?
Se é força buscar na fuga a salvação (vergonhoso
embora o proceder), se é força deixar ao selvagem
lares e férteis campos? lembra-te que mares profundos
tolhem a retirada, nem têm naus que sulquem as ondas
do pego irado, e salvem a vida pobres que tudo perderam.
Eia, pois, sem tardar, lança-te ao mar encrespado
e de novo provoca as vagas em naus bem armadas.
Voa em auxílio da pobre gente no que puderes.
Qualquer a sorte que te espera, quaisquer os trabalhos,
esforça-te por arrostá-los e suplantá-los com brio.
Se a destra onipotente te conservar são e salvo
e te conceder, com a derrota do inimigo, o pendão da vitória
e desdobrar ao olhar paterno os sinais do triunfo:
ditoso dia nos será a ambos! A Deus soberano
cumpriremos os votos e renderemos os devidos louvores.
A glória conquistada em guerra pela honra divina
te será muito doce: eis, filho, o teu belo futuro!
Se porém por desígnio imutável do Pai sempiterno
o último alento te colher na primavera da vida,
se a morte te arrancar em plena flor da existência:
então te aguardarão imarcescíveis louros e honra perene,
glória imorredoura dourará nos céus teus destinos!
Trocam-se assim pelo dia eterno efêmeros dias
À luta pois com braço forte, e no fundo do peito
gravado o nome do Senhor que governa o universo”!

Assim falando envia o filho à empresa gloriosa.
Dá-lhe quatro dezenas de companheiros bem equipados,
manda soltar ao vento as velas, e à divina clemência
roga auspiciar as primeiras estréias do jovem.
De pronto ergue as âncoras a marujada valente
e em voz cadenciada puxa as amarras que vai recolhendo
em círculos. Volta proas à vaga a marulhar mar em fora,
desdobra dos altos mastros o cândido linho,
enquanto o vento, bojando as velas, as cordas estira.
O Norte se abate sobre o mar, o casco impelindo
e abaulando as velas; voa a lisa proa, cortando
o pego espumante, roçando apenas o dorso das ondas.
Ora aqui, ora além fundeia nos litorais rumorosos.
Só se abranda o rondo do oceano enraivado,
quando a Ursa Maior o bafeja com ventos propícios
e a nau, vencida muitas milhas, ferra os diversos
portos dos cristãos. Muitos logo aí se oferecem
ao intrépido chefe para sócios da empresa e da sorte.
Vai pois o jovem brioso escoltado de cem companheiros
ansiosos por domar com as armas a altivez do selvagem.
Já no termo da rota, e perto das aldeias dos brancos,
a que vinha socorrer ainda a tempo, penetra
na foz espaçosa de grande rio, e remando
contra o ímpeto da corrente veloz, se dirige
ao acampamento inimigo. Aí ajuntara o gentio
forças vindas de toda a região em redor.

Das fortificações, umas se ocultam em selvas sombrias
do lado em que o sol, deixando o zênite, se engolfa no plaino;
outras, escondidas juntos dos litorais arenosos,
ouvem o troar das ondas que se enrolam e quebram.
O melhor da mocidade foi destinada a esses lugares:
ergueram aí, em vasta construção, três fortalezas
cercadas de larga trincheira de troncos gigantes.
Rodeavam cada um dos fortes seis voltas de lenhos,
robles descomunais, fincados na terra, ligados
a madeiras transversais com cipós da floresta.
Era um muro soberbo: duas torres e três baluartes
o reforçavam de cada lado; neles estreitas janelas,
quais furos invisíveis, foram deixadas, por onde
pudesse o arco estridente soltar a seta ligeira,
causando com golpes traiçoeiros feridas de morte.

Aí se ajuntara toda a juventude guerreira
de sangue borbulhante e sedento de lutas infames.
Brande as armas feroz: o arco e as setas velozes,
o tacape ornado de penas várias, alisado e polido
pela mão do bárbaro com o ferro ou dente afiado
do porco montês: em todas as suas ferozes usanças
é a arma que os serve. Têm também impenetráveis escudos,
couros peludos, arrancados ao dorso das feras
e endurados ao sol. Pintam os membros robustos
com as cores da tribo: tingem com listas vermelhas
as faces, a fronte e as meias pernas; o resto do corpo
com riscas pretas, tão bem enlaçadas, membro por membro,
que imita a pele pintada verdadeiros vestidos,
que em nada desmerecem dos que, com o requinte da arte,
borda a agulha na mão habilidosa do artista,
nem das redes caprichosas, tecidas de fios variados.
Outros depenam o peito e as costas de inúmeras aves
e tingindo-lhes as penas de variadíssimas cores
colam-nas ao corpo, untado todo de visgo.
Outros ornam o topete com asas de pássaros
e dependuram muitos enfeites dos penteados cabelos.
Com estes e muitos outros adereços, medonhos e feios,
cobrem os membros nus os selvagens ferozes.
Ao vê-los o herói, poderosos em número e armas,
aí reunidos para saquear barbaramente
a gente lusitana toda, estas palavras amargas
disse cheio de indignação: “eis aí, companheiros,
as hordas cruéis que distilam dos peitos malvados
o veneno mortal do furor e do ódio implacável
e nos ameaçam com a guerra o completo extermínio.
Contra nós se arrojarão em bloco cerrado,
com todas as forças que a raiva esporeia.
Cumprirão seu desígnio nefando, se em estréia brilhante
nossas armas não lhes quebrarem o furor sanguinário.
Daqui nasceu toda a guerra. Portanto com peito invencível
lancemo-nos, todos, contra as hostes selvagens.
Adiantemo-lhes a morte que contra nós preparavam,
e que eles merecem. Eis a hora dos valentes e bravos!
Alento e energia nos dará o Deus poderoso
que domina as alturas. Sua mão vingadora
sobre o inimigo desumano descerá justiceira.
Vingando as ofensas sacrílegas, sua cólera santa
dizimará com a morte as alcatéias ferozes.”

Terminada esta arenga, com armas divinas
robustece o peito: com cuidado examina a consciência
e a seguir aos pés do sacerdote de Deus se ajoelha,
para isso o chefe piedoso consigo o trouxera,
e liberta-se do peso das culpas que talvez contraíra.
Entusiasmaram-se os soldado: a fala do chefe
calara fundo nas almas. Seguindo-lhe o lúcido exemplo
purificaram os corações de todas as manchas
com a confissão. Lavra nos peitos agora incontido
o fogo da guerra, e justa ira lhes ferve nas veias.

Já a noite avançada vencera metade do curso
e transmontando-se inclinara para os pousos celestes.
À voz do chefe toda essa mocidade guerreira
atira-se às armas, rema contra a corrente, ao encontro
do arraial inimigo. O brilho sinistro das armas
invade o rio. Branquejam as águas da espuma dos remos.
Saem-lhe ao caminho correndo os cruéis inimigos
em chusmas: uns arrojam da terra chuvas de setas,
outros coalham as águas de igaras ligeiras
e de perto esticam os fortes arcos. Voam zunindo
de toda a parte flechas em profusão, gemem os arcos
ao romper da seta emplumada, silvam os ares
à passagem das flechas, aturdindo os ouvidos dos bravos.
Ora a este, ora àquele procura alvejar com golpe certeiro
a turba furiosa: com a seta veloz semeia feridas.
Fremindo de raiva luta por afastar aos invasores.
Estes porfiam em contrário e avançam cortando
a corrente adversa do rio: com incessantes descargas,
que a pólvora arroja entre nuvens de negra fumaça
e estrondo soturno das parias, castigam o arraial inimigo.

Arrebatado de ardor, com a voz, com o braço
o terrível Fernão, seguido dos seus bravos, acossa,
dobra e afugenta das águas a chusma dos bárbaros.
Como quando das regiões polares o Norte impetuoso
se arremessa ao encalço das nuvens pelos espaços;
vencidas, elas debandam em rápida fuga,
varrendo os nimbos da altura, o azul imenso floresce
no firmamento; estira o vento das fúlgidas asas
e vencedor, aspira livre as auras celestes:
assim o jovem, seguido de seus valentes, expulsa
da superfície do rio as hordas todas dos inimigos.

Estes, apenas alcançam a terra, buscam velozes
os arraiais, precipitam-se desordenados qual no mar alto
o desencadear do Sul. O temor dá-lhes asas às pernas.
Mal se emboscaram nas elevadas trincheiras
obstruíram as entradas com troncos gigantes:
urram dentro, atroando os ares com bárbara grita.
Parecia que do céu os astros se despenhavam
fragorosamente ou que terrível tufão abatia
a floresta, rachando os robles estrondosamente.
Uns, da cabaça curva espetada de longos
e reboantes canudos, tiram sons cavernosos.
Outros sopram horrendamente em búzios recurvos
ecoando um som medonho: são os clarins dos selvagens.
Preparam as armas e nesse ínterim, quando um misto
de terror e de raiva os agita, eis que o herói
aborda a margem do rio e calca firme a areia.
Fixa a cada soldado seu posto, vibram os peitos de todos,
a passo acelerado avançam pelo longo da praia,
de armas em punho. Reluz o ferro das lanças,
a espada de dois gumes e o fuzil que as balas vomita
com horrível estrondo, quando sobre a pólvora salta
a faísca sedenta, levando ao inimigo rápida morte.

Lá avança pelo seco areal, a passo firme, Fernão,
esbelto mais que todos os outros , trazendo
como um sol prateado nas armas fulgentes.
Enérgico, ateia nos companheiros a chama da guerra,
e todos já próximos dos arraiais se atiram a um tempo,
a alma em fogo, decididos a romper a trincheira
à força de golpes, e acabar com essa gente odienta.
Postam-se em linhas de ataque, do peito indignado
rompem brados medonhos: não se atrevem os bárbaros
a sair em campo e terçar armas com os sitiantes.
Contentam-se com defender nos fortins e nas cercas
esperanças fagueiras. Pelas frestas, deixadas adrede,
arroja, uma chuva de flechas, no intuito
de impedir aos invasores o assalto dos muros.

Com não menor afinco os nossos atacam e tentam
entrar ora aqui, ora ali, lançando, furiosos, inúmeras balas
que a pólvora expele com fragor horripilante.
Voam os projéteis zunindo e abrem rombos nos troncos
e dizimam hordas selvagens. Em fileira cerrada
o general e seus jovens guerreiros investem, expondo
os corações valentes à morte. O braço esquerdo no escudo
resguarda-os das flechadas, enquanto o direito maneja
as armas ruidosas e rompe com o machado impiedoso
o muro de robles. A força força as entradas; o ferro
rasga as trincheiras, arromba as seis voltas de lenhos,
arrancando os madeiros gigantes. Lá se escancaram
enormes abertas: atiram-se por elas com estrondo
os jovens todos, qual rio raivoso, depois que rompeu
com esforço aturado os diques, se espraia nos campos
rolando troncos, bosques inteiros, no turbilhão horroroso.
Repentinamente, eis que novo terror se apossa dos inimigos
ao verem que os heróis com mão de ferro romperam as cercas
e com machadinhas ferozes tudo abatem por dentro.
Ainda não se esgota a fúria selvagem: nos peitos magoados
estuam juntos medo e cólera. Correm todos a um ponto
e opondo troncos sustam os invasores e sem perda de tempo
cravam-no de mil flechas velozes e os cobrem de chagas.
Aos índios desesperados, acirra-os a certeza da morte.

Eis senão quando, desgarrando-se uma seta emplumada
corta o espaço silvando horrendamente, vindo cravar-se
pouco abaixo do peito de um soldado e lhe rasga
fundo as entranhas. Tomba ele mortalmente ferido
e exala para logo o derradeiro suspiro.
Rápido, o selvagem rearma o arco para nova flechada,
firma atrás o pé direito e os dois braços robustos distende
em sentido oposto: parte a seta ligeira a fincar-se
no corpo de um segundo e o prostra estendido por terra
em agonia. Ergue a horda selvagem um clamor de vitória,
vibram os peitos feros e de furor se avolumam.

Ao contemplar a morte cruel dos amigos valentes,
o coração magoado do herói e de seus companheiros
referve de dor e o fogo da vingança os abrasa
até os ossos. Atiram-se como essas feras da Índia
que, acostumadas a transportar no dorso gigante
fortins de madeira e homens armados para a batalha,
se enfurecem à vista do sangue, desordenam co’as patas
as fileiras inimigas e arrastam em medonha ruína
robustos soldados, escudos e capacetes empenachados.
Assim se inflamaram os guerreiros e a raivar se lançaram
contra os ferozes contrários, e atracando-os de perto
rasgam chagas mortais com as adagas em punho.

É tudo pressa, tudo azáfama: a este fende-lhe o peito
um golpe de espada e a ferida fatal lhe devassa
o abismo profundo; raivosamente o selvagem se vira
de borco para o chão natal, e morde a terra morrendo.
A outro atravessam as ilhargas com a ponta da lança.
A terra geme ao baque do peso; um soluço lhe arranca
golfadas de sangue e sacode os membros agonizantes.
A inúmeros outros, as finas espadas lhes varam
lados e intestinos; aparecem à luz as entranhas
e escapam as vísceras, conspurcando-se a terra.

Acende-se mais e mais a coragem do chefe
e seus bravos: derrubam a golpes mortais, muitos selvagens.
Ora decepam braços enfeitados com penas de pássaros,
ora abatem com a lâmina reluzente cabeças altivas,
faces e bocas pintadas de vermelho urucum,
ora partem as frontes salientes entre as covas das têmporas
e enchem o Tártaro triste dessas vidas sem rumo.

Soam armas e golpes e gemidos e baques de corpos.
Aqui e ali jazem cadáveres de inimigos crivados
de chagas profundas, empastados de pó: a sangueira
cobre os arraiais e espumante se embebe na areia.
Não sustenta mais o embate assim dizimada,
a horda selvagem. Volta as costas e em fuga apressada
abandona as cercas e escapa por portas bem conhecidas.
Mal puderam os inimigos fugir às lanças e temidas espadas
e salvar a vida acolhendo-se à segunda trincheira,
inútil refúgio do desespero; atrás do muro de troncos
se escondem e tapam as entradas com grandes barreiras.
Eis que , não sofrendo demoras, com as armas tingidas
no sangue inimigo, Fernão com seus jovens briosos
acorre, e olhos na glória, se precipita ao assalto
do arraial medroso, e à força de golpes arrombam
os robles enormes, abrindo numerosas e largas entradas.
Uma vez dentro estraçalham a fortaleza e trucidam
a turba inimiga, ceifando com a espada afiada
esses corpos brutais. Junto ao mar o estrondo ecoa medonho
enfurece horrendo na praia o soldado matando
e enterrando vitorioso na areia corpos aos montes,
no inferno vidas que cevavam as carnes em carnes humanas
e impinguavam os ventres com o sangue dos homens.

Já não se alonga o combate, já não pensa o inimigo
em entesar o arco, e defender a vida com brio.
Tudo é pressa em fugir, não lhes valem de nada os redutos,
só resta galgar ligeiro as muralhas do último forte.
Nossas armas gloriosas prostraram o feroz inimigo,
rompendo à força as trincheiras com vasta matança.
O general e seu bravo esquadrão, cansados embora
do duplo esforço e com os corpos crivados de flechas,
conservaram ainda frescas a conhecida energia
das almas nobres: vibram de entusiasmo: uma de duas,
ou acabar com as hordas bárbaras ou deixar no combate
a vida, comprando com o sangue a vitória da pátria.

“Triunfadores meus, diz o chefe, vossa espada valente,
armas e destras estão tintas ainda do sangue maldito;
sem tardar, lancemo-nos contra o inimigo vencido,
enquanto o abate o terror das últimas duas batalhas.
Vedes quantos aí estão prostrados a gemer moribundos,
quantos outros na fuga receberam mortais ferimentos.
Ou exterminar de vez esta raça felina
com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia
gloriosamente”. A estas palavras, parte. A todos devora
o mesmo fogo. Arrojam-se como impetuosa corrente
ou como a tempestade negra que revolve o oceano,
encapela as ondas, rasga o linho branco das velas,
quebra os altos mastros, e, girando três ou quatro vezes as popas
as submerge voraz em rápido redemoinho.
Quantos estragos não causou então o braço valente
do jovem chefe! quantos corpos de guerreiros ferozes
arremessou à morte, tomando vingança no sangue inimigo.

Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços,
fervesse-lhes no peito um sangue mais quente,
acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe,
e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens,
atirando-os para as sombras eternas do inferno.
Mas, ai! que imensa é a humana inconstância!
Estes, mais aqueles começam de vacilar, vai-os prendendo
pavor covarde, cada vez maior, ao verem que a onda
dos índios cresce, já recuam e se furtam à luta,
esgueirando-se insensivelmente, esses covardes sem nome.
Tornam às naus, desligando da margem as barcas.
Abandonam o chefe, que ignora esse ato de infâmia,
entre poucos companheiros, o furor da pele renhida.

“Para onde fugis, desgraçados? que medo vil vos assalta
o coração sem brio? que inimigo estais perseguindo
tão à pressa? Já não vos movem os louros das duas vitórias
e as fortalezas que tomastes com a morte de seus defensores?
Apavorados de terror indigno, não vos envergonha
abandonar assim vosso chefe à fúria dos bárbaros
entre tantos perigos, ao peso de tantos trabalhos.
Para onde fugis? Sustai o passo! A maior parte dos vossos
sucumbe: voltai pois ligeiros e, ao lado do chefe, valentes
destruí o arraial. Para que tanto amor pela vida?”
Enquanto, ardendo em fúrias, o jovem vai fulminante
espalhando nos acampamentos os horrores da morte,
certo que os seus lutam a seu lado, e em esforço supremo
esmagam as hordas bárbaras finalizando a peleja,
eis que pouco a pouco em magotes os selvagens acorrem
à batalha. Mandam-nos das florestas vizinhas às cercas,
para auxílio dos seus e reforço aos que iam cedendo.
Por atalhos desconhecidos afluem de todos os lados
em grande número. Depois que enxameou essa turba
imensa, vai confuso rumor pelas trincheiras
e grita desacostumada até às nuvens se ergue.
Tal o arroio sombreado que desce das altas montanhas
entre seixos roliços num rolar gorgolhante,
depois que a tempestade repentina despejou suas iras,
chuvas vergastando montes e bosques e rasgando caminhos
às águas que correm a se ajuntar: então ele, soberbo
de tanta riqueza, se arroja e arranca à terra das margens
troncos gigantes, rola em redemoinho pedras enormes,
imitando ora o rumor soturno das ondas
ora o rolar do trovão nas alturas celestes.

Assim a turba imensa enchia já a cidadela
e reanimadas pelo socorro, em luta desigual, apertava
uns poucos de heróis, com o furor de vingança
que lhes incutia a derrota e a morte dos seus.
O alvo principal de seus golpes, incessantes e rijos,
é o jovem chefe, que mais e mais se enfurece, admirado
de que o inimigo cobre de repente tanta coragem e força:
não havia, há pouco, nesses peitos tanto denodo
nesses braços tanto vigor… A custo percebeu finalmente
que os seus deserdaram, enquanto ele mergulhava na turba,
inebriado de sangue, olhos na derradeira vitória.

Ao ver-se abandonado, entre os inimigos, com poucos
companheiros, entendendo ser inútil lutar contra tantos,
retira-se dos arraiais e pouco a pouco recua
na direção do rio, para entrar com seus bravos
nas barcas que aí estariam presas. Mas ai! os cobardes
menosprezaram as ordens e a vida do chefe e largaram
para longe da margem a  armada, cederam
a um temor vergonhoso: eis o chefe desses cobardes.

O herói, em vão magnânimo, ao ver que os companheiros
levaram para longe os barcos e que a turba inimiga,
em linha de batalha e entre gritos de guerra, começa
a apertá-los, brada: “Para onde corremos, colegas?
Já não nos resta esperança alguma! O inimigo
nos cerca de toda a parte, de toda a parte o oceano!
A terra nos falta! buscaremos a armada, cortando
com o peito as ondas? para onde nos dirigir-nos no aperto
presente? Pois, rompamos à ponta de espada essas hordas!
Paira sobre a nós a morte? – que paire! Oh! que belo
deixar por Deus as vidas caras na arena sangrenta
e comprar com esse sangue a vida de muitos!”
Disse, e logo (pois já o ataque dos índios não dava
lugar a demora), à invocação do nome de Cristo.
com os colegas se arroja contra os selvagens, postado
a arrastar na própria morte os corpos de mil inimigos
e a rasgar com o punhal reluzente mil feridas sangrentas.

Os inimigos se apinham ao redor e o carregam com gritos
de terror e com flechas: não lhes dá a horda descanso,
como caçadores à volta do leão que freme asseteado:
ele a raivar ruge horrendamente e feroz ameaça
com o olhar torvo, ora este, ora aquele, impertérrito
rasga com a boca em sangue os corpos que alcança:
Eles o apertam, fincam-lhe lanças nas costas, nos flancos
à porfia, até que todo roto de feridas sucumbe
e a terra treme ao baque dos membros robustos.
Assim o enxame dos inimigos em cerco cerrado
estreitou o jovem: esse o fere com a clava, aquele com setas
e em vão ele multiplica esforços. Em algazarra se arrojam
sobre ele. Sem tréguas, apertam-no daqui e dali, insaciáveis.
Redobram os golpes: as flechas lançadas de todos os lados
já o cobrem todo, as armas tinem, rompe-se a malha
da couraça, já não resiste a tantos golpes o escudo.
Copioso lhe inunda o corpo e por completo
o abandonaram as forças; a sede lhe queima a garganta
e o pobre exala pelos pulmões a alma ofegante.

Já tem o herói o rijo peito crivado de inúmeras setas,
o sangue o cobre todo e lhe empana a beleza
dos membros. A praia tremeu à sua queda. Tombando
os olhos moribundos se cravaram na altura.
As próprias selvas e rochas e montes vizinhos e rios,
chorando ao som das águas cristalinas, o viram
cair ao peso das chagas, e arrancaram dolorosos gemidos.

Ó venturoso moço, prostrado na arena sangrenta
depois de devastar valente as hordas selvagens,
bela morte juncou teu sepulcro de mil setas e corpos.
Não te assediou o peito a fome do ouro nem da vaidade;
mas a paixão imensa da glória divina
e a honra imaculada de Cristo te imola
nesse altar, para que sejam tuas feridas a vida de muitos.
Vencido pelo amor da pátria e liberdade dos teus,
vergaste a cabeça ante a morte, sob a espada inimiga
tombando na juventude em flor, primavera da vida.
Sem tremer, desprezaste a terra pelo bem dos amigos,
deixaste escapar, pelas chagas abertas, a vida.
Grande jovem, eis tua glória! os séculos todos
saberão que preferiste morte cruel à desonra
de Deus, da pátria e do pai, e que, desconhecendo
o temor cobarde, expuseste a vida aos maiores perigos
e apagaste, com teu sangue o incêndio da guerra
que surgia ameaçador. Lembrar-se-ão os teus Lusos
e confessarão agradecidos dever-te tal benefício:
graças a tua morte, eles vivem e desfrutam da paz.
Venturoso Jovem, entre os felizes, nas alturas celestes
brilha a tua glória irmanada à glória divina.
Privado embora do sepulcro teu corpo, escondido
embora no seio da terra ou no ventre dos índios,
nada se te dá. Fica-lhes esta glória mesquinha,
depois que as hordas ferozes com sua imensa ruína
juncaram as fortalezas, e com o sangue selvagem
encheram o leito do rio, e dobraram as cervizes altivas
à força de golpes, e se lhes abrandaram as iras.
Mandam o chefe das armadas lançar mão dos remos velozes
a toda pressa, e abrir vela aos ventos propícios
sem demora. Deixam a um tempo a praia e na praia
o chefe estendido. As naus deslizam do rio
para o mar, varrem com a popa a superfície do pego,
e dirigem-se ao porto dos cristãos, que em perigo de morte
o governador geral mandara auxiliar da cidade
não acabasse com eles o feroz inimigo dos brancos.
Eles, depois dos longos trabalhos da guerra e da fome,
depois de mil ameaças do inimigo e perigos de morte,
reconhecem enfim, na curva do mar, os navios amigos.
Revigorados de nova esperança, erguem as armas  ao alto,
os peitos acabrunhados alijam cuidados que pesam.

Mal puderam ouvir de perto a voz querida de amigos,
e a notícia dos combates horrendos e das morte sangrenta
do chefe, os corações soçobram de dor repentina,
transbordam as lágrimas pelas faces a mães e esposos,
e deixam escapar do peito entre fundos soluços
estas queixas desoladoras: “E nós, jovem ilustre,
nós, entre mortes tão cruéis, escapamos incólumes!…
Não eras tu o repouso suave que teu pai preparava
para a sua velhice? Tu, para nos proteger a cabeça,
entregaste a tua à morte sangrenta, aceitaste
pelo nosso descanso os duros trabalhos da guerra.
Valia tanto, ilustre chefe, nosso bem comprá-lo
com tão duras feridas tuas e tanta amargura
de teu amado pai? que sofras tu morte horrorosa,
por nossa vida? que sejas pasto do cruel inimigo,
e não nos confranjam a nós tuas chagas doridas,
nem esse sangue que te escorre pela fronte robusta?
Nós, esquecidos de tanto sacrifício? Tanto nos acobarda
o amor desta luz transitória e a paixão egoísta
de viver, que não nos deixa vingar tua morte
em merecida desforra? Ah! vingar-nos-emos!”
Abalados por tais pensamentos, sinais de funda tristeza
deram todos . Prestam as últimas honras ao chefe
e aos companheiros mortos, e as exéquias preparam.
Mães piedosas, virgens inocentes, meninos e adultos,
velhos vergados ao peso dos anos, dirigem-se à igreja.
Junto do altar, coberto e velado por pano de luto,
está uma essa: bela faixa branca em forma de cruz
abraça o ataúde em todo o seu comprimento.
Cobrem-se de panos pretos também os altares sagrados.
Círios em profusão enchem as luzes dos templos.
Segundo o costume dos cristãos recitam o símbolo
dos Apóstolos e os mandamentos: então o ministro sagrado
envergando paramentos negros oferece preces e súplicas
ao Pai celeste e imola qual cordeiro inocente,
o corpo de Jesus, vítima das culpas dos homens,
que de mãos e de pés os cravos cruéis trespassaram
e a morte abateu sanguinolentemente.
Daqui e dali, gemidos e soluços ressoam, e prantos
entrecortados por gritos de mulheres; lágrimas correm
em rios pelas faces, em altas vozes invocam a bondade
do Pai onipotente. Justamente sentidos , abalam
com súplicas os excelsos palácios celestes.
Os próprios homens deixam correr pelas faces esquálidas
grossas bagas. Arrancam suspiros do fundo do peito
e com merecidas honras, os tristes funerais acompanham.
Cumpre o sacerdote quanto exige o rito piedoso:
oferece pelas almas do chefe e colegas os supremos sufrágios
e ajudando-os com uma última prece, faz o giro da essa,
asperge-a com a água santa e pronuncia as derradeiras
palavras, pedindo o descanso deles na eternidade serena.

A lua resplendente erguera por detrás do oceano
seu rosto e completara uma só vez o disco brilhante.
Os guerreiros que tão duros combates e riscos tinham corrido
por terra e por mar, retemperam exaustos os membros
e refazem as forças. Cicatrizam as feridas abertas
pelas setas velozes, essas feridas inumeráveis
recebidas ao lado do chefe, enquanto com as espadas
dizimavam o inimigo. Todos os cidadãos e tropas amigas,
num só coração e num só grito, arrojam-se à guerra
jurando vingar a morte cruel de Fernão, o valente,
e aniquilar as hordas selvagens que cercavam a cidade.
O inimigo erguera junto aos muros vastas trincheiras,
e outras fortificações. Reunira inumerável exército,
para desafogar sua raiva louca e ódio descomedido,
exterminar o povo cristão em sangrenta matança
e saciar as negras fauces e os ventres sedentos de sangue.

Sem perda de tempo dirigem à força de remos
as rápidas canoas contra a corrente. Distendem-se
os duros braços e os músculos saltam. Sulcando
as ondas contrárias, voam e em porfiada corrida
atracam no local inimigo, e de um salto ágil
os pelotões fogosos pulam das barcas, palmilham
os litorais adversos, com altos brados invocam
o poder onipotente e arrojam-se contra o inimigo.

Nem valas, nem homens sustêm o assalto dos nossos
ainda que os embarque e fira a chuva das flechas .
Encarniçam-se, e rompendo por sendas impraticáveis,
abatem quanto se lhes ergue diante e acossam os bárbaros,
crivando-os de feridas e juncando de mortos o campo.
Também os nossos levam o peito varado de setas.

Seria longo repetir os golpes de cada um dos guerreiros,
as vidas que despenharam nos abismos da terra.
As armas lançaram no inimigo extermínios medonho.
O sangue correu em riachos que espumejavam:
muitos tombaram passados ao fio da espada,
muitos, de mãos e pescoço presos, carregaram cadeias.
Domado ficou assim seu furor indomável.
Cessou finalmente o terror, a altivez  e ameaças
dos bárbaros; e voltou aos lusos a paz suspirada.

Só depois que as guerras findaram de todo, deixaram
os guerreiros as aldeias dos cristãos, bem seguras,
com pleno sucesso. Largam as velas ao vento propício.
A terra se afasta e as popas no oceano se engolfam.

Chegam finalmente à presença do ínclito governador.
Como é fácil de imaginar, estava ele ansioso
pela sorte do filho e pela dos companheiros.
Ao Pai onipotente orava com fervor dia e noite
livrasse os povos cristãos das fauces da morte
e exterminasse o furor do feroz inimigo.

Logo que soube da morte cruel do filho extremoso,
ainda que o amor sublime de pai lhe estremecia no peito
e lhe rasgava a alma com golpe profundo,
escondeu no nobre coração a imensa desgraça.
A virtude invencível dominou o sofrimento
ainda que atroz e consolou o amor dolorido,
porque a morte do filho salvou a vida de muitos.
Tão digno foi do filho esse pai e do pai esse filho!

 

  • Documento Completo