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São Mateus comemora 481 anos… Mas, seria isso verdade?

Dizem que a cidade de São Mateus foi fundada no dia 21 de setembro de 1544 e hoje mesmo, estaria comemorando 481 anos, o que faria dela a segunda cidade mais antiga do Espírito Santo, atrás apenas de Vila Velha, fundada em 1535.

Mas e se documentos históricos contassem uma história diferente?

O que diz a tradição?

Segundo o verbete da Wikipedia sobre a História de São Mateus, que menciona diversas referências (entre elas muitas publicações antigas), os primeiros colonos que se estabeleceram aqui teriam vindo de Vila Velha para cá fugindo dos indígenas, mas não há registros que confirmem isso.

Na verdade, vários documentos, inclusive o mapa abaixo, feito em 1616, falam que mesmo depois de 1544 essa região estava ainda despovoada.

A legenda do mapa diz que toda a área do Rio Doce (ES) até o Rio Caravelas (BA) estava despovoada. Veja mais sobre este mapa aqui.

Dizem também que, em 1566, o padre jesuíta José de Anchieta teria mudado o nome da povoação de Cricaré para São Mateus. Só que nenhuma das que conhecemos menciona a presença de Anchieta em São Mateus – pelo menos foi esta a conclusão que chegou a pesquisadora Sofia Maria Valente Simões dos Santos em sua dissertação de mestrado intitulada São Mateus: do Lugar à Vila, defendida na Ufes em 2018.

Os jesuítas eram extremamente organizados: a Companhia de Jesus incentivava o constante registro de todos os acontecimentos nas atividades dos padres e fazia grande esforço para reunir e preservar essa documentação. Assim, ainda hoje temos acesso a centenas de cartas escritas por eles (inclusive muitas delas aqui no site), e se alguma delas contasse essa história, não teríamos dificuldade em encontrar.

Quanto a este assunto, há quem acredite que a história de Anchieta em São Mateus seria confirmada pelo que está escrito no livro Tratados da Terra e Gente do Brasil, de 1583, escrito pelo padre Fernão Cardim, que também era da Companhia. Cardim menciona alguns acontecimentos em suas viagens por regiões da Bahia e teria se encontrado com um padre José (que poderia ser Anchieta), como pode se ler no trecho abaixo:

Acabada a visita dos Ilhéus, tornamos a partir aos 21 de setembro, dia do glorioso apóstolo São Mateus: ao dia seguinte nos deitou o tempo em Porto Seguro. (E ainda que eram arribadas, tudo caía em proveito, porque visitava o padre de caminho estas casas, e o tempo contrário dava lugar para tudo.) Fomos recebidos de um irmão com muita caridade, porque os outros três estavam na aldeia de São Mateus com o sr. administrador, que tinham ido à festa. Partimos logo para a mesma aldeia visitar aqueles índios: passamos um rio caudal mui formoso e grande: caminhamos uma légua a pé, em romaria a uma Nossa Senhora da Ajuda, que antigamente fundou um padre-nosso; e a mesma igreja foi da Companhia: e cavando junto dela o Padre Vicente Rodrigues, irmão do Padre Jorge Rijo (que é um santo velho, que dos primeiros que vieram com o Padre Manuel da Nóbrega, ele só é vivo) cavando como digo, junto da igreja, arrebentou uma fonte d’água, que sai debaixo do altar da Senhora, e faz muitos milagres, ainda agora: tem um retábulo da Anunciação de maravilhosa pintura e devotíssima: o padre que edificou a casa, que é um velho de setenta anos, vai lá todos os sábados a pé dizer missa, e pregar a quase toda a gente da vila, que ali costuma ir os sábados em romaria, e para sua consolação lhe deu o padre licença que se enterrasse naquela igreja quando falecesse; e bem creio que recolherá a Virgem um tal devoto e receberá sua alma no Céu, pois a tem tão bem servido. Chegamos à aldeia, que dista cinco léguas da vila, por caminho de uma alegre praia. Foi o padre recebido dos índios com uma dança mui graciosa de meninos todos empenados, com seus diademas na cabeça, e outros atavios das mesmas penas, que os faziam mui lustrosos, e faziam suas mudanças, e invenções mui graciosas: dali tornamos à vila, e vindo encalmados por uma praia, eis que desce de um alto monte uma índia vestida como elas costumam, com uma porcelana da Índia, cheia de queijadinhas d’açúcar, com um grande púcaro d’água fria; dizendo que aquilo mandava seu senhor ao Padre Provincial Joseph. Tomamos o padre visitador e eu a salva, e o mais dissemos desse ao Padre Joseph, que vinha detrás com as abas na cinta, descalço, bem cansado: é esse padre um santo de grande exemplo e oração, cheio de toda a perfeição, desprezador de si e do mundo; uma coluna grande desta província, e tem feito grande cristandade e conservado grande exemplo: de ordinário anda a pé, nem há retirá-lo de andar, sendo muito enfermo. Enfim, sua vida é verè apostolica.

– Cardim, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro, 2013. 194 p.

Como é possível ler, o texto conta de alguns padres que saíram de Porto Seguro para participar de uma festa em uma Aldeia de São Mateus. Pesquisadores defenderam que esta aldeia seria a São Mateus à beira do rio Cricaré e usam esta passagem para comprovar a tradicional lenda da fundação de São Mateus em 1544.

O problema desta linha de raciocínio é que Cardim também escreve que a aldeia que eles visitaram ficava a 5 léguas da vila de Porto Seguro, onde estavam situados.

As léguas eram uma antiga medida de distância utilizada pelos portugueses durante o período colonial. Não há uma conversão direta de léguas para quilômetros, porque a medida das léguas poderia mudar – ela deveria ser a distância que um homem conseguia percorrer em uma hora de caminhada e, em geral, defende-se que era o equivalente a aproximadamente 6 quilômetros (como informa a Academia das Ciências de Lisboa).

Se considerarmos isso, as 5 léguas entre Porto Seguro e a Aldeia de São Mateus seria equivalente a 30 quilômetros de distância, um número muitas vezes menor do que a distância real entre Porto Seguro e a cidade de São Mateus, que é mais de 350 quilômetros, como dá para ver na imagem abaixo:

Em rota criada no Google My Maps, quem fosse a pé de uma cidade à outra, caminharia 356 quilômetros.

Considerando tudo isso, parece que a tradição de que São Mateus teria sido fundada em 1544 não se sustenta. Então, o que os documentos realmente dizem sobre este assunto?

O que dizem os documentos?

Existe uma carta de 1716 assinada pelo Marquês de Angeja, 3º vice-rei do Brasil e vice-rei da Índia Portuguesa, que menciona uma carta recebida por ele em 9 de março de 1716. Esta teria sido descrita por Domingos Antunes, que teria iniciado um povoamento no Rio de São Mateus com mais 8 homens, como é possível ver abaixo:

Esta carta, de 1716, fala do início da povoação no Rio São Mateus, muito depois da tradição que conta de 1544. Veja o documento em detalhes aqui.

No texto da carta, fica claro que, antes da chegada desses homens, não havia nada naquela região: eles deveriam “dar princípio a povoar essa terra”; havia “necessidade… de um sacerdote”; e eles precisavam estar vigilantes “para que os bárbaros [indígenas] que vivem nas aldeias vizinhas não façam o que costumam”.

Outra comprovação de que a região foi povoada pela primeira vez no início do século 18 é o fato de que os registros de doações de sesmarias (sistema colonial de distribuição de terras destinadas à produção agrícola) em São Mateus são de 1720. Essa informação aparece no livro Sesmarias na capitania do Espírito Santo: território, poder, colonização e fontes históricas (séculos XVIII-XIX), concebido e elaborado por um grupo de pesquisadoras do Laboratório de História, Poder e Linguagens (LHPL) da Ufes:

Há dois registros de doações de sesmarias em São Mateus, ambos de 1720.

Desta forma, se considerarmos que os primeis colonos se estabeleceram na região apenas em 1716, São Mateus não está comemorando 481 anos, mas sim 309 anos de idade!

A importância de São Mateus continua

O objetivo deste artigo é apresentar o que a documentação nos mostra sobre a fundação de São Mateus. O fato de que a cidade não tem 481 anos, nem é a segunda mais antiga do Espírito Santo, não diminui em nada a sua importância para o estado e para a região.

Sua história, sua tradição e sua cultura continuam igualmente relevantes e merecem ser comemoradas.

Foto de capa de Teobaldo Rivas.

Fabio Paiva Reis
Fabio Paiva Reis
Fabio é capixaba, natural de Vitória. Historiador, fez doutorado na Universidade do Minho, em Portugal, e se especializou em História do Espírito Santo Colonial. Fundou este site em 2015 e, no ano seguinte, foi premiado no edital de Educação Patrimonial da Secretaria do Estado da Cultura do Espírito Santo. Hoje é professor de História no Instituto Federal do Espírito Santo - Campus São Mateus.

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