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Fabio Paiva Reis
RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar o papel do mito da Serra das Esmeraldas na Capitania do Espírito Santo seiscentista nas disputas políticas, administrativas e territoriais da América portuguesa do século XVII. Acreditamos que será possível compreender o processo de valorização do Espírito Santo no período colonial – entre as primeiras notícias das riquezas no interior, em fins do século XVI, até a criação da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro, no início do XVIII. Os conflitos no estabelecimento das fronteiras da capitania refletem outros conflitos, coloniais e internacionais, sobre a posse dessa região, ao mesmo tempo desejada (devido às sonhadas esmeraldas) e abandonada (devido ao baixo povoamento e dificuldade de expansão). Para compreendermos esse processo, analisamos também a construção da cartografia seiscentista, a influência que ela recebe dos relatórios das entradas ao sertão, e como ela influenciou entradas subsequentes. Defendemos que a crença no mito da Serra das Esmeraldas intensificou a interiorização da colônia, colocou o Espírito Santo entre as regiões mais cobiçadas da América portuguesa e transformou a capitania em protagonista das disputas entre Portugal e Espanha, nas fronteiras coloniais, e entre as próprias capitanias hereditárias.
PALAVRAS-CHAVES
Cartografia; Serra das Esmeraldas; América Portuguesa; Espírito Santo;
ABSTRACT
The objective of this text is to analyze the role of the Serra das Esmeraldas myth in the Captaincy of Espirito Santo during the 17th century’s politics, administrative and territorial disputes in the Portuguese America. I believe that it’s possible to comprehend the process of valorization of this Captaincy in the colonial period – between the first information about precious metal and gems in the countryside in the end of the 16th century, until the creation of the Captaincy of Sao Paulo e Minas do Ouro, in the beginning of the 18th century. The conflicts establishing the frontiers of these captaincies reflect other conflicts, colonial and international ones, about the ruling of this region, which is at the same time desired (because of the emeralds) and abandoned (because the difficulty of the expansion). To comprehend this process, I analyze also the construction of the 17th century cartography, its influence from the reports of the travels to the countryside and the adventures that happened after. I defend that the belief in the myth of the Serra das Esmeraldas intensified the knowledge of the wild parts of the colony, putting Espirito Santo as one of the most desired region of the Portuguese America and transforming this captaincy into the protagonist in the disputes between Portugal and Spain, in the colonial frontiers, and between the very Brazilian captaincies.
KEYWORDS
Cartography, Serra das Esmeraldas, Portuguese America, Espirito Santo.
INTRODUÇÃO
Nos primeiros anos da colonização da América portuguesa, o ouro era o metal precioso mais desejado pelos portugueses, sendo substituído pela prata, pois relatos iniciais, provindos de índios e aventureiros portugueses, deram início à crença de que haveria riquezas no lado português da América, que corresponderiam às riquezas do lado espanhol. A lendária proximidade entre o Potosi e o sertão brasileiro levou à crença no Sabarabuçu, inicialmente uma serra de prata, à espera dos portugueses. A prata perderá seu posto para a esmeralda durante o século 17, com o Sabarabuçu se tornando a Serra das Esmeraldas, mito formado a partir de relatos de nativos e viajantes sobre pedras preciosas de muitas cores no interior na colônia – principalmente verdes.
As constantes buscas por riquezas e os conflitos coloniais pela região do Espírito Santo, onde ficaria a Serra das Esmeraldas, influenciarão a formação do território da capitania no século 17, e que se modificará durante todo o período colonial. Essa formação territorial é visível também na cartografia e nos ajuda a compreender esse processo de formação da Capitania do Espírito Santo.
AS FRONTEIRAS DA CAPITANIA DO ESPÍRITO SANTO
Durante o período colonial brasileiro, as fronteiras das capitanias eram bastante subjetivas. Apesar de se considerar a área litorânea de 50 léguas para as primeiras capitanias, a partir das cartas de doação, não era fácil estabelecer essa área, por não saberem os colonos onde começavam e onde terminavam as tais 50 léguas.
Nos primeiros anos de Vasco Fernandes Coutinho no Espírito Santo, ele estabeleceu com Pero de Góis o limite entre sua capitania e a de São Tomé (depois conhecida como Paraíba do Sul). Esse limite era o rio Itapemirim, atualmente no sul do Espírito Santo (OLIVEIRA, 2008: 24). Entretanto, no governo de Francisco Gil de Araújo, em fins do século 17, essa fronteira passou a ser contestada devido à demarcação feita pelos novos donatários da Paraíba do Sul, filhos de Salvador Correia de Sá e Benevides (João Correia de Sá e o Visconde de Asseca).
Segundo Alberto Lamego, “no mappa apresentado a el-rei, eles declararam: ‘a capitania que foi de Gil de Goes [sic] começa em Santa Catharina das Mós, rio Itapemirim, donde parte da banda do norte com a do Espirito Santo’” (LAMEGO, 1938:111-112), fronteira aparentemente contestada por Francisco Gil de Araújo. Os marcos divisórios postos pelos senhores da capitania vizinha estavam sendo arrancados constantemente e Francisco Gil recebeu ordem do Ouvidor do Rio de Janeiro para impedir essas transgressões até que se comprovassem os limites das duas capitanias. Até que isso ocorresse, a fronteira ainda seria considerada o rio Itapemirim (SALVADOR, 1627: 25). Como não houve demarcação dos territórios do Espírito Santo nesse período, o Itapemirim manteve-se como fronteira sul do Espírito Santo durante o período colonial, seguindo a fronteira dos primeiros donatários.
Não sabemos qual foi o mapa citado por Lamego, mas o uso da cartografia para definição de fronteiras coloniais merece destaque. Chamamos atenção para o fato de que, em alguns mapas portugueses e holandeses do século 17, o limite sul da Capitania do Espírito Santo é considerado o Cabo de São Tomé, quase 100km ao sul da atual fronteira com o Rio de Janeiro e quase 200km ao sul do rio Itapemirim.
Figura 1 – ALBERNAZ II, João Teixeira (1640) – «Do Cabo de S. Tomé às Ilhas de Goropary», Descrição de todo o marítimo da terra de Santa Cruz chamado vulgarmente o Brasil. (Projeto Torre do Tombo Online – Direção-Geral de Arquivos)
Podemos apenas imaginar que Francisco Gil, com acesso a essas informações, via aí o motivo para contestar o que alegavam seus vizinhos, ou apenas queria aumentar seu território. Esses limites eram bastante vagos durante o período colonial e as capitanias, muitas vezes limitadas a poucas povoações litorâneas, tendiam a se confundir. No caso do Espírito Santo, essas regiões eram disputadas não só ao sul como também ao norte e, posteriormente, a oeste.
A fronteira norte do Espírito Santo aparece nos mapas sempre na altura do rio Doce. Não foi possível determinar o momento na história em que a fronteira com a Bahia tivesse sido considerada neste rio. Mesmo assim, é a informação que os cosmógrafos trazem: as legendas dos apógrafos do livro Razão do Estado do Brasil indicam a fronteira no rio Doce.
Figura 2 – ALBERNAZ I, João Teixeira (1626) – «[Demonstração da Capitania do Espírito Santo…]», Livro que dá Razão do Estado do Brasil. (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro).
Hélio Vianna, em sua edição crítica do Razão do Estado do Brasil, também questiona o fato, dizendo: “o próprio texto do Livro que dá Razão do Estado, no capítulo referente à vizinha capitania, apresentava como limite o rio Circacem ou Cricaré, hoje São Mateus” (MORENO, 1955: 82).
Entretanto, o texto seiscentista não é assim tão claro. Seu possível autor, Diogo de Campos Moreno, escreveu:
A capitania de Porto Seguro parte com o Espírito Santo pelo rio Doce, em dezenove graus, ou segundo outros querem pelo rio Cricaré, mais ao Norte, que foi o ponto por onde se dividiu este Estado entre D. Francisco de Sousa e D. Diogo de Menezes (MORENO, 1955: 123-124).
Apesar de Moreno propor que a fronteira no rio Doce era a estabelecida antes da divisão da América portuguesa em duas repartições, isso também não tem fundamento1“O Cricaré nunca deixará de ser considerado em território desta capitania. Assim se referiu Mem de Sá na carta em que comunicou, ao rei, a morte do filho”. (FREIRE, 2006: 107). O que podemos perceber é que a divisão do território brasileiro entre as repartições do Norte e do Sul, dada em 1608 – e que durou até 1612 –, colocava as terras ao Sul do rio Cricaré sob a administração de D. Francisco de Sousa, enquanto Moreno escreveu a Razão do Estado do Brasil por orientação de D. Diogo de Menezes, governador da repartição do Norte.
Sabemos também que Diogo de Menezes queixou-se ao Rei sobre a criação da repartição do Sul, por acreditar que tais interesses políticos pela região dos desejados metais e das pedras preciosas não tinham validade: de acordo com ele, “as verdadeiras minas do Brasil são açúcar e pau-brasil” (FREIRE, 2006: 109). Assim, questionava a perda do território não pela jurisdição sobre a região do Sabarabuçu, mas provavelmente pelas terras onde poderia plantar cana e cortar madeira.
A repartição do sul foi criada como mercê do rei a D. Francisco de Sousa que, além disso, também recebeu a jurisdição sobre todas as minas do Brasil. Realizou entradas tanto por Porto Seguro como pelo Espírito Santo e principalmente por São Paulo (como vimos em parte nos capítulos anteriores), mas nunca fez grandes descobertas, o que levou ao desaparecimento da repartição em 1612.
Salvador Correia de Sá e Benevides, ao assumir a nova repartição do sul, criada em 1658, tinha interesses semelhantes ao de D. Francisco de Sousa. Segundo Charles Boxer, o motivo para as aspirações de Correia de Sá era simples:
as extraordinárias conquistas de Cortez e Pizarro, e a rapidez com que se descobriram minas de ouro e de prata na América Espanhola inspiraram, naturalmente, nos colonos do Brasil a firme convicção de que riquezas semelhantes em minerais deviam existir do outro lado das linhas de Tordesilhas (BOXER, 1973: 309).
Anthony Knivet, aventureiro inglês abandonado no Brasil pela tripulação do corsário Thomas Cavendish, disse ter encontrado a Serra Resplandecente em uma expedição que saiu do Rio de Janeiro e foi organizada pelo pai de Salvador, Martim de Sá (KNIVET, 2008: 38). Os relatos dessa e de outras viagens provavelmente chegaram a Salvador, que passou sua juventude em São Paulo, e influenciaram seus desejos na descoberta das riquezas do sertão.
Ele fez cálculos baseados nas informações das entradas que teriam encontrado A Serra das Esmeraldas, ou o Sabarabuçu (nesse caso, as minas de prata), e deduziu que ficavam na Capitania do Espírito Santo (BOXER, 1973: 315). A proximidade o fez desejar, principalmente após o fim dos conflitos com os holandeses, encontrar as esmeraldas a fim de obter condições de explorar as minas.
Ao assumir a repartição do sul, entrou em conflito com Francisco Barreto, que governava as capitanias do norte. Segundo Barreto, a jurisdição de Salvador deveria começar no Rio de Janeiro, e não no Espírito Santo. Alegava que a capitania em questão fez parte da repartição do sul nas divisões anteriores da colônia e exigia que continuasse assim (FREIRE, 1941: 63-64).
Barreto desistiu de brigar pela região, porém, sem muito esforço, pois Salvador tinha o apoio da Coroa e ele não se encontrava em uma posição política muito favorável2“Acrescentava, não sem insolente sarcasmo, que teria dado a Salvador o controle do Brasil inteiro se ele o houvesse pedido, ‘a fim de não receber outra reprimenda igual à que Vossa Majestade houve por bem passar-me a propósito dos problemas de Pernambuco’”. (BOXER, 1973: 318). Os caminhos estavam abertos para Salvador.
Boxer concluiu que, apesar de ter estado em Vitória e ter pedido o envio de joalheiros e lapidários de São Paulo para aquela capitania, Salvador não chegou a realizar sua entrada. As promessas de mercês e a procura de índios e colonos para a entrada foram em vão e a expedição não foi realizada (BOXER, 1973: 319).
A descoberta de grandes jazidas de ouro no final do século 17 levou a um impressionante encolhimento do território da Capitania do Espírito Santo. As disputas políticas para a abertura de estradas para a região das minas foi vencida pelo Rio de Janeiro e os moradores do Espírito Santo se viram privados de ir ao sertão de sua própria capitania ainda em 1704. Cinco anos depois, viria a criação da Capitania de São Paulo e Minas do Ouro. O Espírito Santo ficou limitado entre as serras e florestas, a oeste, e o mar, a leste.
A morte de Manuel Garcia Pimentel (filho de Francisco Gil de Araújo) em 1711 gerou o interesse da Coroa em adquirir a região. A compra foi efetivada em 1718 (OLIVEIRA, 2008: 195) e a capitania passou a ser governada a partir da Bahia. A independência política só aconteceu em 1797, com a nomeação do primeiro Governador da Capitania, Silva Pontes. Doutor em matemática e geógrafo, ele estabeleceu em 1800 a fronteira com Minas Gerais, fixando definitivamente as fronteiras do Espírito Santo.
CONCLUSÃO
As crises econômicas foram um dos motivos que incentivaram as entradas de meados do século XVII, gerando um imenso interesse dos colonos pelas riquezas perdidas do sertão. A partir dessa época, ocorreram diversos conflitos políticos e de fronteira, nos quais Francisco Gil e, antes dele, governadores como Salvador Correia de Sá e Benevides brigaram para manter a jurisdição sobre os territórios da Capitania do Espírito Santo, disputados pelas capitanias do norte e do sul.
Esse conflito também se refletiu na cartografia portuguesa. Com o passar do tempo, acompanhando os novos dados da colônia, a cartografia mudou constantemente as fronteiras norte e sul. Em razão da busca pela Serra das Esmeraldas, a Capitania do Espírito Santo pode ser considerada ponto importante na história dos conflitos políticos e territoriais na América portuguesa. Por si mesmos e pelas forças presentes na América portuguesa, esses conflitos alteraram drasticamente o espaço e a história do Espírito Santo colonial.
BIBLIOGRAFIA
ALBERNAZ I, João Teixeira (1626) – «[Demonstração da Capitania do Espírito Santo…]», Livro que dá Razão do Estado do Brasil. (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro).
ALBERNAZ II, João Teixeira (1640) – «Do Cabo de S. Tomé às Ilhas de Goropary», Descrição de todo o marítimo da terra de Santa Cruz chamado vulgarmente o Brasil. (Projeto Torre do Tombo Online – Direção-Geral de Arquivos)
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FREIRE, Mário Aristides (2006) – A Capitania do Espírito Santo: Crônicas da Vida Capixaba no tempo dos Capitães-mores. Vitória: Flor & Cultura Editores.
KNIVET, Anthony (2008) – As incríveis aventuras e estranhos infortúnios de Anthony Knivet: memórias de um aventureiro inglês que em 1591 saiu de seu país com o pirata Thomas Cavendish e foi abandonado no Brasil, entre índios canibais e colonos selvagens. 2.ed. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed.
LAMEGO, Alberto (1938) – «A Capitania do Espírito Santo sob o Domínio dos Donatários», Revista do Instituto Histórico e Geografico do Espirito Santo. Vitória: Off. Da “Vida Capichaba”, 11.
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OLIVEIRA, José Teixeira de (2008) – História do Estado do Espírito Santo. Ed. Vitória: Arquivo Público do Estado do Espírito Santo: Secretaria de Estado da Cultura.
SALVADOR, Frei Vicente de (1627) – História do Brasil. Disponível em: <http://purl.pt/154>. Data de consulta: 29/04/2011.
IV Simpósio Internacional de Cartografia Histórica (Lisboa, 2012)
Abaixo está a programação do IV Simpósio Internacional de Cartografia Histórica, realizado na Biblioteca Nacional de Portugal, em Lisboa, no ano de 2012, quando esse artigo foi apresentado.