26/07/1619: Ao R.do P. Symão Pinheiro da Companhia de IESU Provincial do brasil. Em ausência ao R.do P. Manuel Fernandes no Collegio da Bahia – Da Cap.a do Spirito Sancto

Referência

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Vol. VI. Instituto Nacional do Livro: Rio de Janeiro; livraria Portugália: Lisboa. 1945. p.161. Disponível em: . Acesso em: .

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26/07/1619: Ao R.do P. Symão Pinheiro da Companhia de IESU Provincial do brasil. Em ausência ao R.do P. Manuel Fernandes no Collegio da Bahia – Da Cap.a do Spirito Sancto

Esta escrevo para que Vossa Reverência saiba como se fizeram estas tão desejadas pazes dos Gaimorés, nesta Capitania do Espírito Santo, e me ajude a dar graças a Deus. E já que tem visto as causas que houve para se quebrarem da parte dos Tapuias, ouvirá o modo que tive para entrar com eles.

Véspera de S. Filipe e S. Tiago, veio a esta portaria um moço às sete horas da manhã e me disse:

– Chamam-te os Tapuias; ei-los, ali estão.

Salto fora com uma pressa extraordinário, que causou espanto nos companheiros. Estava eu, com o chapéu e bordão no terreiro da Aldeia, bem leve no estômago, animoso, porque acabava de dizer missa. Peço companheiro, o Ir. António Ferraz, que muito se alegrou, quando o avisaram para tal caminho. Parto-me para o mato. E ia dizendo comigo si manseritis in me et verba mea in vobis manserint; quodcumque petieritis fiet vobis.

Esta foi a primeira vez, a cabo de cinco meses que havia estava esperando esta hora. Os Portugueses, que estavam na Aldeia, que de contínuo aqui residem, todos me seguiam, tirando um; os Índios, porque os não tivesse por covardes, foram atrás de mim para verem o fim do negócio. Eu andava mais que eles. Meia légua tinha andando pelos matos, quando achei lugares frescos aonde tinham estado, e o fogo, que tinham feito, e um bugio de moquém, com outra carne espetada no caminho, que de indústria me tinham deixado. Começo de alevantar a voz e pregar no deserto: os ecos eram grandes por aqueles vales sombrios. Não cesso de chamar com perdigão, que chama as perdizes, sem nenhum acudir. E alguns me estavam ouvindo, como depois soube, quando me arremedavam, repetindo as palavras que eu dizia então.

Torno-me com os despojos, scilicet, paus tostados, mantéus ou tipoias, com que trazem os filhos atados, que me largaram no caminho. Chego à Aldeia mais teso do que quando parti. A caridade do Padre Jerónimo Rodrigues topei no caminho, e, depois de chegar a casa, reparti pelos companheiros, que, antes de comer, nos fomos todos, diante de Santo Inácio, com os despojos sobreditos dos Gaimorés, e lhos oferecemos, como se foram de muito preço; e estimamos que foi tão ditoso que ouviu a divina resposta: nunca perder a esperança. Ao outro dia estavam esperando por mim no mesmo lugar, e subiam-se em árvores para verem a um companheiro de Jesus, como aquele bom Zaqueu, desejoso de ver a Jesus, se subiu na árvore de sicómoro. Isto viu um Principal, e logo me veio avisar. Avisei ao Superior desta Aldeia, que então era, mas respondeu-me que não era ainda chegada a sua hora, fazendo pouco caso disso, e que quando eu tivesse a faca e o queijo então cortaria por ele, e que então se fariam as pazes.

Vê V. R. o cavalo brioso que está quebrando a peia, com que está preso, ouvindo o tambor, trombeta e som de guerra ou falcão da Noruega, faminto, na comprida noite, vendo de madrugada a grande presa: assim, nem mais nem menos, estava eu monteiro1Alusão do narrador ao próprio apelido, desejoso de saltar na caça, volvendo os olhos a uma e outra parte, sem haver quem me largasse.

Neste comenos traz Deus Nosso Senhor o muito desejado navio. Vem recado como Vossa Reverência nos vinha visitar a esta Aldeia. Já me a mim parecia que tinha concluído com as pazes. Com a boa estréia de Vossa Reverência determino de as fazer, estando Vossa Reverência presente, mas diis aliter visun est. Vem recado segundo: que nós fossemos à Vila, a ver a Vossa Reverência e aos mais companheiros. A 1ª oitava do Espírito Santo, às nove horas, nos pusemos ao caminho os quatro companheiros. Ao outro dia chegamos à casa da Vila, a tempo que ainda eu pude dizer missa; e disse-a pela conversão dos Gaimorés, diante do sepulcro do santo Padre Joseph, meu amigo antigo, que me tinha recebido na Companhia. Não duvido que fui ouvido no céu desta vez. E posto que minha oração não foi tão fervorosa como a de Ana, mãe de Samuel, todavia nalguma cousa me parecera com ela, scilicet, na aflição do espírito e amargura do coração, pelos chistes e vaivéns dos émulos imitadores de Fenena,que assim a afligiam, a Ana. Mas vultus illius nun sunt ampluis in diversa mutari.

A 5ª feira me entregou Vossa Reverência esta Aldeia dos Reis Magos para ter cuidado dela, e posto que o meu coração estava nessa Baía, como Vossa Reverência muito bem sabe, abaixei a cabeça. O aplauso que houve em todos os da Vila com esta nova, deixo eu para outros. Somente direi que no mesmo ponto e hora em que Vossa Reverência me entregou a Aldeia, nesse mesmo se me entregaram os Gaimorés por ordem do céu, aprovando Deus Nosso Senhor a eleição que Vossa Reverência fez. E não quis o Senhor que se fizessem as pazes nesta Capitania, se não pelo Superior desta Aldeia. Para que saibamos quão bem lhes paga algum trabalho que toma por seu amor, e para que vejamos quão mimosos e privados são de Deus. E àqueles que não tem partes para alguma coisa, os faz idóneos para tudo, escolhendo-os. Nem Saúl prestara para nada, se não fora ungido e escolhido do Senhor.

A 6ª feira nos partimos da Vila, por mandado de Vossa Reverência, à vista de tantos Irmãos, aos quais eu ainda não tinha falado, e tirando por aí, e os Índios da Aldeia, que ficavam sós por outra parte. Positus in medio quo me vertam nescio, já ficava em casa por alguns dias para descansar do trabalho do caminho. Não sei que me aguilhoava. Vou-me diante do Santíssimo Sacramento, alevanto-me resoluto de me partir logo pela manhã da sexta-feira, às nove horas do dia, Quattuor Tempora, acompanhado de Vossa Reverência e dos mais Padres e irmãos, que até o porto me levaram. Com suma alegria, me fui pelo rio abaixo, arrebatado como outro Filipe Diácono, qui inventus est in Azoto.

Quando foi a meia noite da sexta-feira tinha andando doze léguas, e já os Gaimorés assomavam amigos, na varanda desta Aldeia, scilicet, quatro, que me estavam esperando (eram cinco, mas um se recolheu logo, tanto que viu que eu estava ausente da Aldeia). Os Índios, todos medrosos com tais hóspedes em casa, mandam por mim avisar-me ao caminho que acudisse. Enfim, que os recebi em casa, os quatro, como embaixadores das quatro partes do mundo, véspera da Santissima Trindade, em que isto sucedeu. E lhos ofereci e dei a sua divina Majestade como primícias desta nova Cristandade. Ao outro dia, os mandei chamar por estes quatro depois de os agasalhar com muito amor e repartir com eles do resgate que achei, de que eu bem falto estava. Vieram então seis ou sete, mas não trouxeram as mulheres nem os filhos. Todos estes eram homens de guerra apostados a qualquer efeito, com seus arcos e frechas, como soldados que entram o arraial inimigo. Véspera de Corpus Christi entraram na Aldeia e trouxeram as mulheres e filhos. Estes trazem elas atadas as mãozinhas aos pescoços seis meses, avezando-os a segurar-se desta maneira, de modo que sendo-lhes a elas necessário correr pelos matos os filhinhos as não largam. Desta feição entraram. E logo apresentaram seus presentes, scilicet, cêras, almecegas, e uma casta de verniz, que mui estimam os Índios a que chamam os naturais itacic, bugios, aos quais as mulheres são de mamar e criam ao peito, igualmente com os próprios filhos, dos quais ficam sendo colaços.

Neste dia se apontaram sessenta por todos. Olgaram muito de ver a procissão, que se fez dos Índios, dia de Corpus Christi, danças e baios, e assim se puseram logo em ordem como os outros. E logo comecei-lhes de pregar e passar o Catecismo, que eu ainda tinha, e folgaram muito de o ouvir, e muito mais por saberem que eu o tinha aprendido de um seu parente bem ladino mui cristão, de Gaspar Curado, que em minha companhia esteve algum tempo; e desta maneira tirava da antiga memória algumas palavras, e eu me espanto algumas vezes de me lembrarem ainda, pois há catorze anos, que os larguei, por obediência, não de todo, porque sempre lhe tive afeição e eles a mim. E me persuadi que Deus mos tinha entregues desde o dia que fiz as pazes nos Ilhéus; e não se espante Vossa Reverência de me lembrarem ainda algumas palavras, porque já ouviria dizer que algumas mulheres, tomaram tanta afeição a crianças enjeitaras, que lhes nasceu o leite com que lhes deram de mamar, sem nunca dantes o terem, nem haverem gerado: da mesma maneira, que me sucedeu a mim com estes filhos enjeitados. A Deus sejam imensas graças e louvores, que tornou a dar os perdigotos e filhinhos a sua própria mãe, que os gerou com tanto trabalho, e os tirou àquela que não era sua mãe.

Entre os presentes, que essa gente me trouxe, um foi duas crianças inocentes, que as batizasse. Assim o fiz. Ao outro dia morreram ambas, e na mesma hora e dia foram enterradas com solenidade. A uma se pôs nome Maria e a outra Domingos, pois que o Senhor o escolheu para si e era do Senhor 2O Padre dá aqui a etimologia da palavra Domingos, que era na realidade o seu próprio nome., estas duas almas que mandamos ao céu. Estas manda esta nova Igreja a seu esposo Cristo Jesus. Estes dois cordeirinhos apartamos para oferecer e consagrar ao Senhor que nos meteu de posse da terra da promissão. Estes serão o par turturum, aut duos pullos columbarum, que oferecemos a Deus como pobres, não tendo oferta de ricos.

A esta Aldeia concorreram logo muitos Brancos a ver os Gaimorés, como gente que não podia acabar de crer tal coisa. Parecia-lhes visão e assim a vinham ver. De uma vez vieram até vinte pessoas, uns idos e outros vindos; até o Capitão Manuel Maciel Aranha os quis vir ver e mostrar sua liberalidade, ajudado da Caixa da Imposição, com dinheiro da Vila, trazendo-lhe algum resgate. E se despediu, fazendo fala aos Tupinaquis, exortando-os às pazes, ameaçando os quebrantadores delas, dando-lhes a entender, quanto desgosto deram com as quebrarem os anos passados, e quanta razão tiveram os Gaimorés de se alevantarem. Por derradeiro, em sinal das pazes estarem fixas, lhes dão todos e cada um em particular sua frecha. Concluíu o língua dos Gaimorés, intérprete, fazendo também a sua fala, e estando todos presentes, contentes do resgate que se lhes repartiu, dão também suas frechas ao Capitão em sinal de amor e paz. Depois se partem a buscar frutas do mato quitis e castanhas de jaçapucaia, que traziam em abundância.

A cabo de cinco dias, que a Aldeia esteve o Capitão, se tornou para a Vila, cheio de presentes, que ele muito estimou, e muito mais do recebimento que os Índios lhe fizeram e os domésticos Gaimorés indo todos em fieira, a modo de guerra, com seu tambor, arcos e frechas, e frautas, que sobretudo se ouviam. Pareciam os nossos Índios, junto dos Gaimorés, meninos muito pequenos, e contudo hoje em dia verá V.ª R.ª um principal dos tapuias Capitanazo, um gigante Golias, ir-se assentar entre os meninos da Igreja,como se fora um cordeirinho, desarmado, aquele que trazia assombrados a estes pobres Índios e a toda esta Capitania. Tudo isto são feitos das orações dos meus Reverendos Padres e Irmãos desse santo Colégio e dos santos sacrifícios de Vossa Reverência. E de todos muito no Senhor me encomendo. Desta Aldeia de Santo Inácio e dos Reis Magos, 26 de Julho de 1619. De Vossa Reverência filho indigno em o Senhor. Acabo esta, estando de caminho para ir fazer as pazes à Aldeia de S. João dos Tomiminós, Domingos Monteiro3Bras, 8, 268-9v, 312; Júlio César Cordara, Hist. Societatis Iesu. VI, 2º (Roma, 1859)224. O P. Domingos Monteiro, da Cidade de Lisboa, vivia ainda em 1631 na Aldeia da Assunção (Camamu), (Bras, 5, 130). Andaria nos 64 anos de idade. Já não consta no atálogo de 1641. Professo, de bom exemplo, e “zelo da conversão do gentio” (Bras, 5, 59). O duplo título de Aldeia de S. Inácio e dos Reis magos, indica os oragos da Aldeia Velha e desta nova, conservados ambos nesta, depois da mudança daquela. A mudança supõe a transferência dos objetos do culto da Aldeia Velha. E talvez já o celebre quadro da Adoração dos Reis Magos, se o exame técnico demonstrar que é de feitura anterior a 1615. E se porventura o exame provar que é madeira brasileira a tábua em que está pintado, é indício forte, para o tempo (mais tarde menos forte), de que foi feito na terra, e teria que se pronunciar o nome do Ir. Pintor Belchior Paulo, cuja presença se assinala no Brasil, nesse período, e nomeadamente no Espírito Santo..

 

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