14/09/1624?: Missão dos Mares Verdes que fêz o Padre João Martins e por seu companheiro o Padre António Bellavia por ordem do Padre Domingos Coelho Provincial na era de 1624

Referência

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Vol. VI. Instituto Nacional do Livro: Rio de Janeiro; livraria Portugália: Lisboa. 1945. p.167-176. Disponível em: . Acesso em: .

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14/09/1624?: Missão dos Mares Verdes que fêz o Padre João Martins e por seu companheiro o Padre António Bellavia por ordem do Padre Domingos Coelho Provincial na era de 1624

Já finalmente os Mares Verdes depois de serem por tantos anos buscados assim de Brancos como de nossos Padres, chegada já a sua hora, desceram para a Igreja. Gente belicosa, valente, bem disposta e assombrada, de muito bom entendimento. São em número perto a 450 os quais todos com saúde e alegria chegaram a esta Aldeia dos Reis Magos aos 14 de Setembro no ano de 1624. O modo que tivermos para os descer foi este. Em espaço de um mês chegamos à sua Aldeia. Fomos recebidos com universal alegria de todos, os quais pontualmente observando a palavra, que tinham dado ao Padre, quando os achou a primeira vez, nos estavam esperando. Não estavam todos na Aldeia, quando nós chegamos. Muita parte deles eram à caça, e entre estes o principal. Foi logo o recado da nossa vinda. O qual ouvido, vieram depressa, certificados já que éramos Padres, mostrando conosco e com toda a gente, que conosco trazíamos, muitos sinais de amor, chegando-se a nós sem arco e frecha, ainda que viram os nossos mui bem armados delas de espingardas, antes começaram a cantar e bailar juntamente com os nossos, naquela noite e por todo o tempo que com eles estivemos, tratando-nos do melhor modo que puderam em nos agasalhar e prover de todo o necessário, com muita caridade e amor, de que ficamos mui maravilhados por ver tanta humanidade e cortesia em gente selvagem e bárbara, cuja glória toda está posta em matar e comer os seus inimigos, uns dos quais eram os nosso Índios, o que acrescentou mais a maravilha.

Depois de termos estado três dias na Aldeia, vindo ora uns, ora outros do mato, chegou finalmente o principal. Festejou muito a nossa vinda. Disse-lhe então o Padre que descansasse por aquele dia, que o dia seguinte falariam mais de vagar do que haviam de tratar. O dia seguinte, acabando de dizer missa, o Padre o mandou chamar e fez juntamente congregar os principais deles e dos nossos, com os quais vieram também muitos outros a ouvir o que se havia de fazer e determinar. Depois de se ajuntarem todos, lhes explicou então o Padre o fim da sua vinda, e que viera mais de pressa do que lhes tinham dito a primeira vez, por se arrecear dos Brancos que queriam busca-los para os cativarem; propôs-lhes então o Padre ao principal se lembrasse da palavra que lhe tinham dado de lhe entregar a Aldeia se viesse ele a busca-los e não mandasse Brancos. Depois de ter dito isto e outras cousas semelhantes para mais facilmente os abalar, falaram também cinco Índios os mais principais dos que vieram conosco, com tanto espírito e eficácia de palavras que bem parecia serem eles movidos interiormente de Deus, o qual queria mover e notificar os corações daqueles gentios para livra-los do cativeiro do diabo e toma-los por seus filhos verdadeiros.

No fim da prática disse o principal que estava aparelhado com toda sua gente para vir com o Padre. O mesmo disseram os outros principaletes, sem se achar nem um só que mostrasse um mínimo sinal em contrário, antes com toda a alegria possível ficaram mui alegres e contentes. Do que deu um sinal mui grande o principal, e foi que, estando ele cingido de uma faixa bem larga, da qual dependiam muitos fios de continhas pretas, no remate das quais estavam dependurados todos os dentes de Tapuias, que ele tinha morto, esta apresentou ao Padre como a melhor peça que tinha, dizendo:

Esta me ordenou que eu fizesse, “Ararobá” (que é um dos feiticeiros que eles reverenciam quase como seu Deus), para que eu matasse muitos Tapuias. Dez tenho morto até agora, e dez nomes alcançado deles.

Outro principalete trouxe uma acangetara, grande como um escudo, laborada de várias penas, qual eles trazem de trás das costas e fermosa e juntamente espantosa à vista. Esta, disse então o Índio,quis que eu fizesse um dos nossos pagés, chamado “Ndaiaçu”, para que os nossos filhos tivesse saúde, e já depois que eu a fiz nunca mais me adoeceram.

Outra semelhante peça a esta trouxe outro Índio, a qual fez, diz ele, por mandado de Guaçucangoeraé (é este outro feiticeiro) para que alcançássemos vitória dos nossos inimigos.

Outro dia também o principal apresentou ao Padre a corda com a qual eles amarram os Tapuias quando os matam, de modo que a nós nos parecia que o bem velho renunciava pouco a pouco omnibus pombis daboli, de que ficávamos mui consolados.

No cabo da consulta, vestiu o Padre o principal e deu outros vestidos a alguns, os mais velhos deles, com que se fez na Aldeia universal festa. Começaram a arrancar as roças ainda nova para fazerem o mantimento necessário para o caminho e os legumes que tinham plantados, quebrando os potes, cabaços e coisas semelhantes, com que mostravam evidentemente a boa vontade que tinham de deixar as suas terras e vir conosco para a Igreja. Em todo o tempo que na sua Aldeia estivemos, que foi espaço de um mês, nos consolaram em grande maneira, não se apartando nunca de nós, vindo ora uns, ora outros a visitar-nos pela manhã mui cedo, dando-nos os bons dias, e as boas noites pela tarde, estando falando conosco e com os nossos Índios com muita consolação, convidando-se uns aos outros, pregando de noite e de dia eles aos nossos, e os nossos a eles, de várias coisas de Deus, não se ouvindo palavras de discórdia nem dissenções algumas, mostrando sempre inclinação grande e vontade de serem filhos de Deus, e de estarem debaixo das nossas mãos, pois, diziam por vezes que confiavam muito em nós, reconhecendo-nos por seus livradores, e que éramos homens santos e verdadeiros filhos de Deus, que da nossa vinda tiveram muitos sonhos. Coisas semelhantes contavam com que nos animavam grandemente e tiravam o medo que tínhamos não fugissem pelo caminho como tem acontecido a muitos em semelhantes casos. E bem se deixou ver a grande festa e contentamento que tiveram em sinal do júbilo e alegria que em seu coração ardia por ver se chegava já a hora e tempo de sua feliz dita e nova vida, na muita reverência que nos tinham universalmente todos; porque muitas vezes, quando passeávamos rezando no terreiro, vinham alguns a varrer onde caminhávamos e tirar os paus e pedras, que nos podiam fazer prejuízo. Um  índio de respeito se achou entre eles, o qual, vendo que nós fazíamos muito caso que não entrasse ninguém na nossa ermida, onde dizíamos missa todos os dias, para que não a sujassem, logo foi de moto próprio a buscar paus com os quais fez uma como grade com a qual cercou muito bem a Igrejinha, a fim que nela não entrasse coisa nenhuma que à reverência do lugar em alguma maneira prejudicasse, coisa da qual ficamos mui consolados e edificados. Também alguns dos velhos nos perguntavam, depois que dizíamos missa, o que Deus nos tinha dado a sentir nela acerca da partida, o que tudo atribuíamos à grande vontade que tinham de vir e ao grande conceito que de nós tinham, julgando-nos homens que muito familiarmente tratávamos com Deus.

Era também de espantar o quão sóbrios eram no beber, porque nunca, enquanto com eles conversamos, sentimos bebedices, coisa notável por serem nesta miséria excessivos, mas antes alguns, quando queriam beber, nos vinham pedir licença como que se eles fossem Índios criados debaixo do nosso bafo. Entre os mais sinais de amor que com os nossos Índios mostraram, um foi, que querendo o Padre mandar os nossos Índios fazer as canoas, que eram necessárias para viagem, não no consentiram por então, dizendo que esperassem outro dia, porque lhes queriam fazer algum mimo. Foram logo às suas roças com muita pressa, donde trouxeram legumes em tanta abundância, que os nossos Índios não os puderam levar todos, fazendo a matalotagem para irem fazer as canoas 6 léguas longe da Aldeia.

Quando cantavam e bailavam ao modo dos seus antepassados, diziam a nós e aos nossos Índios, que não estranhássemos aquilo, nem julgássemos que eles fossem por isso mudados, do seu parecer, mas que estavam fortes e constantes, na palavra que nos tinham dado de se vir conosco; e que o mudar-se do primeiro parecer era próprio de Tapuias, e não de homens como eles eram. E bem o mostrou o principal, porque, quando ele se partiu da Aldeia, o que fez, dois dias antes que nós partíssemos, com outros velhos e velhas pela dificuldade que haveria em não poderem seguir-nos, foi primeiro por todas as casas exortando os seus que se abalassem e viessem com o Padre, pois ele já se partia diante de todos. Como se dissera: se eu já me parto com tão boa vontade, bem é que vós todos me sigais. Assim o fez. E no meio do caminho foi esperar-nos, onde nos preparou uma casinha, para nos agasalharmos nela; e em nós chegando nos presenteou, com outros, também alguma caça, que para este fim tinha prestes, o que nos pareceu muito em Índios, os quais nunca conversaram com gente branca donde aprendessem tais termos de humanidade. Dois dias depois dele se partir da Aldeia, que foi a oitava do nosso Santo Padre Inácio, partiu o Padre com as mais gente que ficava, depois de ter posto fogo às casas, a fim deles nunca mais se lembrarem delas, no que não mostraram nenhum sinal de tristeza, nem lágrimas, o que nos espantou por serem as casas novas e mui fermosas. Caminharam seis dias por terra, levando às costas seus filhos, a farinha e todo o seu fato, dizendo que já se tinham esquecido da sua pátria, e que não tinham mais vontade de tornar para trás, antes que lhe tinham ódio, pois livrando-se dela se livravam das mãos do diabo, o qual os perseguia e que as muitas doenças, que lhes deram na Aldeia quando nós chegamos foi por ódio do mesmo, o qual não queria que partissem de lá. Estas coisas diziam eles, e bem diziam a verdade, pois o inimigo infernal lhes pôs muitos impedimentos diante dos olhos, para que não deixassem as suas terras, porque alguns arreceavam não fosse algum branco o companheiro do Padre, por não ser o mesmo que foi a primeira vez; outros arreceavam os perigos das cachoeiras, por se ver em elas manifesto perigo da vida; outros tinham grandíssimo medo por verem ser as canoas, em que eles haviam de ir, de casca, a qual tanto que dá em alguma pedra deita a perder quantos em ela estão; outros duvidavam se os havíamos de repartir aos brancos, dos quais eles tem medo extraordinário por se lembrarem que antigamente cativaram alguns dos seus antepassados; outros arreceavam o apartar-se das suas mulheres, entendendo que, conforme a lei de Deus, uma era a verdadeira mulher; outros finalmente cuidavam que os havíamos de apartar uns dos outros e manda-los para outras Aldeias. Estas e semelhantes imaginações lhes trazia o diabo, mas Deus, que os queria para sua Igreja, todas estas sombras lhes tirava, aquietando-se eles facilmente com as nossas razões, e repetindo muitas vezes que confiavam muito em nós, pois por amor deles tínhamos padecido tantos trabalhos, e tantas vezes, só por livra-los das mãos dos seus inimigos. Ficavam consoladíssimos das nossas palavras e muitas vezes eles mesmos nos incitavam para que cedo partíssemos das suas terras. Incrível era neste tempo a nossa consolação por vermos que tínhamos já tirado a presa das mãos do inimigo infernal e que tornávamos com a vitória, e com o triunfo, tendo nas mãos as almas remidas com o precioso sangue de Cristo Nossos Senhor.

Mas bem é agora que neste restante da carta eu conte a Vossa Reverência os cálices amargos que bebemos com tantas alegrias misturadas, pois foram tantas as atribulações e impedimentos, que se atravessaram, para se desfazer esta missão, que o que as permitiu somente foi poderoso para nos livrar delas e mostrar como tudo o que tínhamos alcançado era obra de sua misericórdia e bondade.

Primeiramente os de Porto Seguro quiseram tentar esta missão, depois que souberam que os Padres tinham já achado os Mares Verdes, os quais eles nunca puderam descobrir. Mas antes que eles fossem, se adiantou o Padre dando pressa o mais que pode; e havendo de ir no ano de 1625, foi no de 1624, e assim eles não puderam efectuar a sua determinação. A esta se ajuntou a segunda que foi do Governador da Vila, o qual ouvindo novas da guerra e que os Flamengos corriam o mar quis que o Padre não fosse por então por ter necessidade dos Índios se alguma ocasião se oferecesse de pelejar por defender a vila, mas quis Deus que o negócio se concertasse de tal maneira que o Governador não impedisse nem disturbasse a missão, deixando-lhe o Padre na Aldeia Índios bastantes para isso. A outra foi, que no tempo no qual o Padre estava para partir deram as bexigas na Aldeia, por mais que procurou de ir antes delas darem estando a Aldeia neste estado, julgou o padre e todos os Índios que já não era tempo de se fazer a missão por estar em risco de se perder de todo ponto por este ano, arreceando com muito fundamento não dessem as bexigas pelo caminho, com tudo isto o Padre a parecer de todos os Padres que então estavam na Vila se partiu para missão escolhendo Índios que tinham já tido bexigas doutra vez, com ânimo porém, que se dessem pelo caminho de se tornar para trás no que vieram todos. Eis que partido e estando nas entranhas do sertão, deram as bexigas a um Índio o qual por o grande desejo que tinha de ir ao Sertão encobriu isto ao Padre, dizendo-lhe que já antigamente as tivera. Ficamo-nos então atalhados e traspassados de dor. Fizemos consulta de tornar para trás, pois tínhamos conosco seis Índios novos dos Mares Verdes os quais nunca souberam de tal peste aos quais quem duvidava não houvessem de dar com muito maior razão do que deram aos outros e assim levávamos a peste ao sertão com perigo de matar a gente nas suas terras, e nós morremos de fomes se houvéssemos de esperar até que sarassem, e ao fim não trazer ninguém. Tudo isto nos persuadia claramente que tomássemos para trás; mas Deus o qual na maior força da tribulação ordinariamente se acha presente para acudir, nos inspirou que fôssemos para diante até vermos em que parava o mal. Fez então o Padre buscar os que ainda não tinham tido bexigas; acharam-se outros dous, mandou então que se fossem outra vez para a Aldeia e nós seguimos a nossa viagem, mas bem sobressaltados cada hora e cada momento se dessem em gluns dos novos. Enfim quis Deus que chegássemos e entrássemos com saúde na Aldeia dos Mares Verdes, mas em nós chegando deu nela uma doença geral de barriga, de maneira que as crianças e meninos pareciam como mortos nos braços das mães, não falando nem mamando. Vinham as mães como espantadas diante de nós, por não ter nunca experimentado tal doença nas suas terras, nos mostravam os filhinhos, julgando que nós pudéssemos dar-lhes saúde; julgamos nós no principio que eram as bexigas, o que nos cortou o coração e alma, mas quis Deus que esse mal logo abrandasse, sucedendo-lhe imediatamente outro mal geral de catarro, tão veemente, que nem nós nem eles podíamos descansar nem de noite, nem de dia, e durou-lhes obra de um mês e meio; a este mal se ajuntou também, em muitos, doença dos olhos, e dos ouvidos, cuidamos nós então que fosse algum ramo de peste que trazíamos conosco, enfim quis Deus por sua bondade livrar-nos de todos estes males e restituir-lhes a primeira saúde.

Botaram eles estes males à boa parte, dizendo: vamo-nos para o mar já que esta nossa terra é tão doentia, não dizendo, nem suspeitando, que nós por ventura trazíamos conosco aqueles males, o que era mais provável. Grande misericórdia foi esta de Deus, em nos livrar destas doenças de modo que não impedisse a sua vinda, mas esta que agora direi a Vossa Reverência mostra em grande maneira a divina misericórdia conosco e que parece que em um modo milagroso quis que esta missão se fizesse e chegasse ao cabo, porque outros Índios estavam conosco destes Tupinaquins da Aldeia dos Reis Magos, os quais não se descobriram, quando o Padre no meio do Sertão fez inquirição deste ponto acerca dos que tiveram as bexigas ou não;. A estes não deu o mal, enquanto andamos no sertão, senão depois de tornarmos, um dos quais nesta Aldeia morreu de pele de lixa; assim o permitiu Deus para que não tornássemos para trás, pois se os outros se descobriram, ficávamos com falta de gente sem a qual não podíamos fazer a missão, sem grande incomodo em todas as coisas, e se então tornávamos para trás, corria risco de se nunca mais poder fazer esta missão até o dia de hoje, por amor das guerras e outros achaques dos quais não faltaram desde então té agora.

Eis que livrados já das bexigas ficava-nos o trabalho e aflição grandíssima em passar tantas cachoeiras e tão perigosas, as quais arreceávamos cada passo quebrassem algumas canoas nas pedras do Rio Doce, com manifesto perigo da vida de algumas pessoas, que nelas iam. E em verdade tais eram elas, que com grandíssimo fundamento se podia isto arrecear, sendo tão grande o ímpeto das águas que por mais que puxassem os Índios com duas e três cordas, contudo isto não podiam vencer o ímpeto dela, de maneira que escaparam das mãos algumas canoas, as quais se fizeram em pedaços por aquelas cachoeiras. Outras vezes se mergulharam alguns Índios nelas, mas sem perigo de vida, porque a nado se livraram. Uma vez deu em uma pedra a canoa, em que ia o Padre e muita gente. Virou-se. Perderam-se muitas alfaias, mas por mercê de Deus nem o Padre nem pessoa alguma perigou, livrados, mais milagrosamente que por indústria dos pilotos, os quais nestas cachoeiras tem grandíssimo medo, por não verem as pedras que debaixo das águas estão, correndo as canoas não com menor velocidade do que correm as frechas pelo ar. Nem menor foi o favor e mercê de Deus em livrar os nossos Índios para que não se perdesse algum deles na barra do Rio Doce, porque depois de se terem mergulhado por vezes, não podendo vencer as furiosas e encapeladas ondas, a nado escaparam, perdendo o fato, que nas canoas traziam, indo entretanto a mais gente pela praia. Com estes trabalhos e aflições quis Deus que alcançássemos as almas dos nossos próximos que tanto desejávamos.

O que nestes 3 meses e meio nós padecemos, a saber, falta do necessário para sustentação do corpo, chuvas, cansaços extraordinários por caminhos dificílimos não julgo ser necessário referi-los nem exagerá-los por serem ordinários a estas missões. Tocarem somente alguma coisa em breve dos muitos trabalhos destes Índios, que em nossa companhia foram e nos ajudaram com seus suores de noite e de dia, os quais pareciam ser sobre as suas forças. Porque puxaram as canoas pelas cachoeiras, carregando e descarregando muitas vezes todo o fato, levando-o às costas por terra até que passaram os perigos, e isto assim à ida como à vinda. E também noutra paragem não podendo ir o fato por mar, o levaram às costas, caminhando 5 dias por praias mui difíceis e trabalhosas, no qual tempo carregaram também às costas as velhas e doentes dos Mares Verdes com muita caridade. Quando partimos da Aldeia abriram caminho novo pelo mato para facilitarem a passagem aos velhos e velhas e meninos, que entre eles havia muitos, no que gastaram alguns dias. Ajudaram a levar ás costas toda a farinha dos Mares Verdes, e todo o seu fatinho, tão grande era o desejo que tinham de traze-los para a Igreja. Fizeram mais 40 canoas, além das que quebraram, no que cansaram muito, porque era necessário buscar o pau dentro do mato e abrir caminho para ele para não quebrar a canoa sendo de casca. Outra vez, por espaço de um terço de légua, puxaram todas estas 40 canoas por terra, não podendo passar pelo rio, por amor de uma perigosíssima cachoeira que nele havia, e todo o fato levaram às costas, e isto assim na ida como à vinda. Deixo de dizer como muitas vezes não achavam o necessário para sua sustentação, sendo mui estéreis aqueles matos, e o rio acima mui falto de peixe. Enfim, quase nenhum dia tiveram para descansar, fazendo tudo com muito fervor, sabendo que era negócio de muito serviço de Deus, e nunca se ouviu algum que se queixasse no meio de tantos trabalhos, coisa que em Índios é rara e mui digna de notar. Verdade é que nós não deixávamos de os animar com as nossas práticas no tempo das missas, as quais dizíamos cada dia, com que eles e nós ficávamos consolados, e tomávamos alento para os trabalhos, e necessidades, em que estávamos postos todos os dias. Alguns deles se confessavam em alguns dias de festa, do que ficávamos mui edificados. Desta maneira quis Deus Nosso Senhor ajudar-nos em esta missão, e nos trouxe com saúde, até chegarmos a esta Aldeia dos Reis Magos, na qual entramos aos 14 de Setembro, tendo partido dela aos 5 de Junho, mas mui diferentemente do que cuidávamos, por acharmos nela as bexigas, o que tanto arreceávamos, de modo que toda a alegria se converteu em tristeza.

Começaram estes Mares Verdes a adoecer delas, pouco a pouco, dos quais mutios morreram, mas baptizados e instruídos na Fé. Tomaram alguns com grande desejo o santo batismo, dizendo muitas vezes que queriam ser filhos de Deus, e que aborreciam as leis e os costumes dos seus antepassados e os nomes que tinham no sertão.

[Conta a Relação alguns casos edificantes destes Índios durante a doença. E conclui que Deus, para não deixar desconsolados os Padres pelo desgosto desta epidemia1Interferência de Serafim Leite na carta.] nos deparou outra casa de gente quase milagrosamente, porque indo os Índios ao mato, a fazer canoas de novo, porque as que fizeram a primeira vez, logo apodreceram, deram com rasto de gente, que dizem ser Tupinaquis, que é a mesma língua, do que estamos bem certificados por encontrar os nosso s Índios estes rastos duas e três vezes na mesma paragem; esta outra gente, que é certa casta de Tapuias, dizem ser infinita, boa gente, roçadora, que tem suas Aldeias e que facilmente se entregarão à Igreja por parecerem domésticos.

Já entre estes Mares Verdes estão alguns na nossa Aldeia, os quais foram seus escravos e sabem muito bem a língua deles, que poderão servir de intérpretes, quando Deus for servido. O que vendo o Padre João Martins está mui animado a que, sendo o Senhor servido e Vossa Reverência nisto o ocupe, de ir a esta missão com todas as vontades. Os Índios, que foram em sua companhia a esta missão dos Mares Verdes, por três vezes, estão também animados, não reparando a trabalhos nem a gasto dos seus mantimentos, e que assim como até agora tem gastado com os Mares Verdes, indo três vezes em busca deles, duzentos mil réis ou mais ainda em fazer canoas, em sustenta-los dois anos com seus mantimentos, assim da mesma maneira querem agora ir e gastar outro tanto e mais ainda, se for necessário, e isto em particular agora por entenderem que os que vão buscar são Tupinaquis e seus parentes. Queira Deus ajudar-nos para que possamos em tudo fazer o que for para sua maior glória e honra 2Missão dos mares Verdes que fez o Padre João Martins e por seu companheiro o Padre António Bellavia por ordem do Padre Domingos Coelho Provincial na era de 1624 (Bras. 8, 360-365). A narrativa não vem assinada, por ser coletiva e elaborada por ambos os missionários. Conserva-se com letra do P. bellavia, em português, mas com vestígios, na ortografia original da marca italiana do secretário, visível sobretudo na duplicação dos tt: matto, mattam, prattica, fato. Sobre o possível tempo topográfico da expedição, voltaremos a fazer no Capítulo consagrado a Minas Gerais..

 

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