BIBLIOTECA NACIONAL. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro (Vol. XX). Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1899. pp. 255-265.
Acervo Biblioteca Nacional
Impressão de msc. da Bibliotheca Nacional. Na respectiva secção existem duas cópias : — uma de 1874, in-fol. de 9 ft. num . escriptas de ambos os lados e medindo 0,”'29 X 0,m185, no cod. sob n. 12, que figura no Catalogo dos Manuscriptos (n. 9, pp. 38-39 do Tomo I), e no Catalogo da Exposição de Historia do Brazil (n. 9.157, pp. 788) ; — e outra tirada posteriormente pela primeira, in-fol. de 17 ff. num. escriptas só peto anverso e medindo 0,m285 X 0,“ 181 no Cod. 24_|2 sob n. 13. — Pela segunda se fez a presente impressão. A primeira foi tirada por outra pertencente ao Instituto Historico e Geographico Brasileiro e está authenticada pelo ex-Bibliothecario o Snr. Dr. Benjam in Franklin Ramiz Galvão com a data de 27 de Outubro de 1874. Em ambas as cópias encontram-se os erros de data : 1696 e 1697, em vez de 1596 e 1597 ; esses erros certamente vem da cópia primitiva, e não póde haver a menor dúvida na rectificação, pois os proprios factos narrados justificam as erratas.
 

Referência

BIBLIOTECA NACIONAL. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro (Vol. XX). Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1899. pp. 255-265. Disponível em: . Acesso em: .

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01/05/1597: Copia de uma carta do padre Pero Rodrigues, Provincial da Província do Brazil da Companhia de Jesus, para o Padre Joaõ Alvares da mesma Companhia: assistente do Padre Geral

Por uma de V. R. do anno passado, entendi dezejava saber em particular a disposição, e esperanças que ha de conversão do gentio deste Estado do Brazil, a que respondo, que pela bondade e misericórdia de Deos Nosso Senhor, está agora aberta a maior porta de conversão, que nunca vimos nestas partes, como se verá pela relaçaõ seguinte.

A 20 de Março do presente anno de noventa e sete, chegou a esta Bahia um galeaõ do Porto em que veio um regimento ou lei que S. M. manda ao Governador Geral destas partes, encarregando-lhe muito por carta particular, a execuçaõ e cumprimento delia, pela qual dá por livre a todo o gentio do Brazil; e manda que nenhuma pessoa vá ao sertaõ a descer gente, senaõ os Padres da Companhia de Jesus somente, e que elles doutrinem os índios e os encaminhem, como na vivenda commum e commercio com os Portuguezes.

Quam grande bem este seja e quam acertado meio, assim para a conversaõ das almas, como para conservaçaõ deste Estado, não se poderá bem entender sem primeiro declarar o miserável em que uns e outros até agora viveram.

Tem os Portuguezes moradores nestas partes, trez generos de inimigos por mar e por terra, e um só de amigos, e chega a tanto á céga cobiça, que só aos amigos fazemos guerra, largando o campo aos contrários, e deixando-os cada vez tomar mais força e animo.

Os primeiros inimigos, são os negros de Guiné alevantados que estão em algumas serras, donde vem a fazer saltos e dar algum trabalho, e póde vir tempo em que se atrevam acommetter e destruir as fazendas, como fazem seus parentes na ilha de S. Thomé.

Os segundos inimigos saõ uns gentios por extremo barbaros por nome Aymores, os quaes tendo quasi destruídas as Capitanias dos Ilheos e Porto Seguro, estáo já no termo desta cidade, e tem feito o mesmo damno e estrago em alguns engenhos e fazendas e vaõ se cada dia fazendo mais fortes e ganhando mais terras. Estes naõ plejam em campo nem comettem onde primeiro saõ vistos, mas fazem saltos nos mattos á traição, com arcos, frechas, e tratam e ferem cruelmente a gente e de feridas taõ grandes que parecem de alabardas.

Naõ tem lingua que os outros índios entendam, nem querem outro commercio mais que matar homens, e os assar e comer.

Os terceiros inimigos saõ os Francezes, os quaes estes annos passados tem feito muito damno e estrago em toda a costa, assim nos navios que navegaõ por estes mares, como na terra, saqueando alguns logares. O escudo, muro e baluartes dos Portuguezes contra todos estes inimigos, saõ os índios de paz que estáo juntos das nossas povoaçoês, os quaes antigamente eram infinitos, mas com doenças que nelles deram e com os continuas aggravos, e muitas sem razoes, e mau tratamento que recebem dos Portuguezes, saõ já poucos, e esses naõ param d’aqui a 200 ou 300 legoas pelo sertaõ dentro.

Os que se conservam e ficam entré nós saõ os que os Padres da Companhia foram buscar ao sertaõ e tem d’ elles tratado em todas as Capitanias, ensinando-lhes a doutrina christã, e conservando-os em sua liberdade ; os mais, como tenho dito, andam pelos mattos escondidos, fugindo dos Portuguezes que de continuo os andam buscando, e trazem com enganos, promettendo-lhes que os poraõ em aldêas e conservaraõ em liberdade, e como os tem em parte segura, repartem-nos entre si como carneiros, apartando os pais dos filhos, e irmaõs dos irmaõs, vendendo-os, e tratando-os como escravos, e fazendo-lhes tantos aggravos, que de pura paixão e desgosto morrem, ou vivem pouco. Destas injustiças tiveram algumas noticias os reis passados, e acodiram-lhe com remedio conveniente : mas naõ teve effeito nem cessaram as iniquas e injustas entradas, sem titulo algum de guerra justa, e esta era a causa por que os Padres da Companhia naõ queriaõ. confessar aos que andavam neste trato, nem se atreviaõ os superiores enviar Padres ao sertaõ em busca do – gentio, sem muito receio e temor, de alguma differença, com os que lá andavam ao salto, como algumas vezes aconteceu e era grande lastima sabermos que estava tanta multidão de almas, esperando pelos padres para se virem com elles receber o santo baptismo, (cousa que os Padres tanto dezejavám e pretendiaõ), e não podia ter effeito ou se faria mui pouco fructo, pelas razoes sobreditas, e se perderam por esta causa muitas almas, não se lhes podendo accudir e dar remedio.

Um gentio principal da banda de Cirige que dista da Bahia perto de 70 legoas, veio a este Collegio por saber do dezejo e fervor que havia nos Padres de fazer missões á partes remotas dos gentios, e fez uma falia ao Padre Provincial diante dos outros Padres, da maneira seguinte: Da-me padres que vaõ ensinar a minha gente o caminho de Deos, porque como hade haver no mundo, que quero ir agora tambem em busca d’ outros, e eu e os meus que estamos mais perto e pelejamos sempre pelos Portuguezes, fiquemos fóra da egreja sem ter quem nos ensine : causou esta sua falia e razaõ que tinha, muita lastima, e lagrimas em os Padres, mas naõ foi por entaõ possivel poder-lhe accudir.

Agora com a nova lei e regimento que S. M. manda, nasce uma nova luz e claridade, e remedio grande para a liberdade temporal destes índios, e muito maior para a espiritual dos portuguezes.

Daqui por diante, com ajuda do Senhor, poderão os Padres da Companhia, sem estorvo e aversão da gente, fazer seus mistérios e accudir a tantas almas tão desemparadas, pois é tirada a occasião e tentação geral, com que o demonio trazia tanta gente enlaçada: e agora sem impedimento descerá o gentio a tratar e commerciar comnosco confiadamente, sabendo que não ha de correr perigo sua liberdade, e que lhe não hão de fazer aggravos, e maus tratamentos : e já de presente ha disto grandes esperanças por toda esta costa.

Os Petiguares que estáo acima de Pernambuco, (entre os quaes haverá sessenta mil homens de peleja), por aggravos que receberam dos portuguezes os annos passados, se ausentaram e ajudaram os francezes, e segurando-se da paz que se-lhes promette, esperamos venham em nossa amisade, a tratar comnosco, como faziam antigamente, ea conhecimento de Deos, e das cousas necessárias para salvação de suas almas.

Acima do rio de S. Francisco, pelo sertão dentro, ha muitas naçoês e muito bellicosas, muitas das quaes tem já noticia dos Padres, e dezejão fazer-se Christaõs se houver quem os chame e assegure. Abaixo do Rio de Janeiro sobre a Capitania de S. Vicente estáo os Carijós que enchem e povoam um grandíssimo sertão, e confina com os índios do Perú. Destes temos ao presente esperanças grandes se converterão á nossa Santa fé, como se verá da relação saguinte ; que trata das pazes que com elles agora novamente se fizerão por meio dos nossos religiosos.

A Capitania de S. Vicente nesta Província do Brazil, está em altura de 24o. Desta Capitania, cem legoas correndo a costa para o sul, habitam numeráveis gentios chamados Carijós, avantajados em policia e costumes, aos outros do Brazil : andam vestidos, assim os homens como as mulheres, são de ordinário de alta estatura, bem proporcionados nos corpos e rostos, e alguns delles táo brancos como os Portuguezes, usão por joias, de contas e pedras luzentes, compridas e delgadas de diversas côres ; com este gentio tinham já algum trato e amizade os moradores de S. Vicente, e se quebrou por muitas razoês e injustiças que com elles uzaram certos portuguezes, os quaes indo com seu capitão n’ uma embarcação a fazer nesta terra uma entrada com regimento e ordem, de que os mandava, de como devião haver-se nella, assim o capitaó como os soldados tanto que se virão nas aldêas dos Carijós, esquecidos do regimento que levavam, fizeram muitos aggravos aos pobres indios, e por remate delles chegando ao porto para se embarcarem tomaram a falsa-fé um indio principal que os acompanhava, chamado Cayobig, irmão de outro gentio por noma Facaranha, eo pozeram em ferros, e a outros metteram por força debaixo da coberta do navio. E não contentes com esta preza, sabendo decertas cazinhas de indios que estavam oito ou nove legoas d^quelle porto, pela terra dentro, em que podia haver até oitenta pessoas, deram n’ellas de repente ea todos trouxeram por força ao navio, chegando com esta preza a Capitania de S. Vicente, e não faltando entre aquelles soldados alguns de consciência, que estranhando este caso tam deshumano e cruel denunciaram delle á justiça ; feitas as deligencias devidas, lançou o provedor mão do navio e de todo o gentio que nelle’ vinha ao qual poz todo em liberdade, obrigando á pessoa que tinha mandado aquelle navio, sustentasse todos á sua custa, e os tornasse a sua terra, o que elle aceitou de boa vontade, mostrando-se sentido do que aeontecêra e queixoso do capitão que no navio mandára ; e dezejando assim elle como o capitão, e provedor da terra de se restaurar a paz com os Carijós, pediram aos nossos quizessem mandar alguns Padres com estes índios, assim com effeito de os restituir e pôr em suas terras, como para tratar da renovação das pazes. E tendo-se respeito ao bem d’ aquella Capitania, e as grandes esperanças que já antes havia da conversão desta gentilidade, lhes concederam dois Padres. Como o demonio vio quanto nisto perdia, e a presa grande que das mãos se lhe tirava, buscou meios e invenções para evitar esta ida, e procurou estorval-a quanto poude, primeiramente com temores da morte, representando aos Padres o evidente perigo em que se mettiáo, por estarem os Carijós levantados e escandalisados dos Portuguezes ; segundo, por ser a terra doentia : e finalmente com falsas murmurações, semeando pela terra, e divulgando que os Padres iam buscar seus proveitos e interesses, e levavam muitos caixoês de resgate para esse effeito, mas não podendo o demonio sair com a sua por nenhuma destas vias (porque os Padres romperam por todos os inconvenientes e perigos que se lhes offerecião, folgando de arriscar suas vidas por salvação daquellas almas) buscou entaó outras invenções que foi, que estando os Padres já embarcados, para se-partir com aquelles índios e alguns Portuguezes, procurou por-lhe estorvos á embarcação, não querendo dar ao piloto ancora, nem agulha, e pondo-lhe varios impedimentos, mas Deos Nosso Senhor a que ninguém póde resistir, tirou todos os estorvos e difficuldades, e assim deram á vella a 27 de novembro de 1696 e com prospera navegaçaõ a 4 de dezembro seguinte tomaram um porto chamado Laguna de los patos, por razão de uma lagôa que junto delle está, em que andam muitos e mui grandes patos, os quaes não somente dão appellido ao porto, mas tambem aos mesmos Carijós, que por outro nome se chamam patos e tem suas aldêas de 20 para 30 legoas afastadas deste porto.

Tomando terra e arvorando os Padres logo sua formosa Cruz, começaram a fazer igreja para celebrar os divinos officios, emquanto alli estivessem, juntamente enviaram tres indios, dous delles naturaes d’aquella terra, e outro principal de S. Vicente, para que fossem dar conta ao Facaranha da sua vinda e de seus parentes. Com receio estavam os portuguezes do successo que teria este recado e crescia-lhes cada vez mais o medo com a tardança dos embaixadores, que foi maior do que todos cuidavam, mas nosso Senhor (cuja empresa era) recompensou a moléstia dos medos, com muito boas e alegres novas que nos deram tres Carijós enviados do Facaranha, dizendo que o nosso recado fôra recebido com muita alegria, e houvera em todos muito praser, sabendo que em suas terras estavam Padres da Companhia que por extremo dezejavam vêr, e que de contentamento choravão muitas lagrimas, e se abalavam homens, mulheres e meninos em grande numero, para os vêr, e em especial o Facaranha, que é o principal dentre elles, o qual mandou dizer aos Padres que logo se punha ao caminho, mas que por ser já velho, e estar longe do porto, não chegaria tão depressa como dezejava, e cada vez se iam mais confirmando estas boas novas com varios recados que Facaranha do caminho mandava, até que finalmente chegou.

Vinha vestido de uma roupeta comprida azul, com uma cruz vermelha de tafetá no peito, ao modo de commenda, seu chapéo na cabeça e sua espada, acompanhado de muitos homens, mulheres e meninos: entrou fazendo uma pratiça, e logo se foi direito ao terreiro da igreja, em o qual passeando continuou com sua pratica, referindo as grandes injustiças e aggravos que dos Portuguezes tinham recebido, e a muita consolação e alegria que de repente sentia com a vinda dos Padres : acabada a pratica entrou na igreja.

Vendo tudo isto os Padres, do navio onde estavam, desembarcaram e se foram para a igreja (ficando ainda no navio os Portuguezes temerosos) Tanto que Facaranha vio os Padres, remetteu a elles levou-os nos braços com muito signaes de amor e contentamento.

Assentados todos tres ao pé do altar lançando o braço sobre o pescoço de um dos Padres começou a chorar, (costume usado entre elles, e comprimento com que recebem os hospedes) e com voz alta e grande sentimento continuando no pranto, foi referindo os seu trabalhos e as angustias passadas.

Isto acabado se saudaram uns a os outros, e familiarmente desabafou com os padres contando-lhes meudamente quantos aggravos recebera dos Portuguezes, e limpando com sua maõ um terreirinho, foi signalando e apontando com riscos todas as circumstancias das sem-razoês e aggravos; e para explicar bem e engrandecer o grande sentimento que tivera, poz um dedo de uma maõ no cume da cabeça e outro debaixo da barba, dizendo com voz alta e esperta: senti tanto isto que parece me arrancaram os miolos, mas que com a presença dos Padres e com vêr diante dos olhos em sua terra, deitava toda a magoa fóra, e toda a má vontade, e queria d’ahi por diante ser como antes, muito amigo dos portuguezes, e elle com todos os seus filhos ser de Deos e tomar nossa Santa-fé.

Segurando se os Portuguezes no navio com estes signaes de demonstraçaõ de amor, se viu com elle o capitaõ e lhe fez entrega de seu irmaõ, e dos mais companheiros e firmaram as pazes com muito gosto e contentamento de ambas as partes, para maior firmeza e corroboraçaõ delias, de sua própria e livre vontade entregou Facaranha aos padres um seu sobrinho (que entre elles corre por filho) para o levarem comsigo, e despedindo-se delles com mostras de saudades, lhes pedio com muita instancia, pois naõ era possivel ficarem por entáo com elles, tornassem cedo ás suas terras, porque queriam todos ser christaõs e ter igrejas, e dando-lhes os padres boas esperanças, elle e os seus responderam que quando embora tornassem, já achariam feitas as igrejas.

Concluídas as pazes, e despedindo-se Facaranha (aquem os nossos eram enviados) tiveram os Padres novas que quatro ou cinco principaes vinham com muita gente de perto de 200 legoas já pelo caminho com dezejo de os vêr, movidos da grande fama, que por suas terras, dos Padres corria, e chegando os Padres e chegaram dias, e foi cousa digna de grande admiraçaõ ver gente taó apartada e remota do commercio e trato dos Christaõs, vir de taó longe a pedir com tanta sede e fervor os quizessem fazer christaõs, e ir ás suas terras levantar cruzes e igrejas e mostrarem-se taõ dezejosos e famintos de ouvir as cousas da nossa Santa-fé, que em lhes querendo praticar nellas os Padres se enchiaõ logo as igrejas, até mais naõ caberem e cobrarem tanta affeiçaõ e amor aos Padres que se naõ podiam apartar delles; levados do grande gosto que sentiam em os ver e ouvir, e aconteceu que estando passeando um dos Padres no terreiro da igreja, estava um destes principaes todo absorto e pasmado com os olhos fitos nelle, por grande espaço descorrendo e notando (como depois disse) a muita differença que nos Padres via dos outros homens, no rosto, na barba, no andar, no traje e nos costumes.

Deste conceito grande e credito que nos Padres tem, lhes nascia fazerem-lhes algumas perguntas de cousas futuras, parecendo-lhes que pelo muito trato e communicaçaõ que com Deos tinham, tudo sabiam, pelo que estando este principal muito triste pela tardança de um seu irmaõ que tambem vinha a vêr os Padres, lhe perguntou quando havia de chegar.

Chegando-se o tempo da partida, sabendo um destes principaes que Facaranha dera aos padres um seu filho, para o trazerem comsigo e doutrinarem, invejando-lhe taó boa sorte lhes mandou por duas pessoas dizer que também era homem de que se podia fazer caso, pois era senhor de tanta ou mais gente que Facaranha, e pois lhe aceitáram um filho, aceitassem tambem outro seu, em signal do muito amor que lhes tinha, eos padres o aceitáram das maõs do pai, e da mai entregando-lh’o elles com muita alegria, antepondo a confiança que tinham nos padres eo bem espiritual de seu filho, ao amor natural e paternal que lhe tinham. E porque naõ podiam os portuguezes fazer mais detença n’aquelle porto, se despediram os padres com muita saudade, e lagrimas d’aquella gente, as quaes tambem pelo caminho iam derramando todas as vezes que nos padres fallárào, segundo disse um portuguez, que vindo de suas aldêas o encontrou.

Eis aqui grandes esperanças que de presente temos da conversão desta gentilidade, o que attribuimos ao sangue de nossos irmáos João de Sousa e Pero Corrêa no anno de 54 a mãos deste gentio, derramárão por amor de Deos.

Tambem o sertão da Capitania do Espirito Santo nos mostra copiosa messe, de que já se começa a colher o fructo, como se intenderá do que agora direi.

No mez de Dezembro do anno de 95 foram por ordem dos Padres dois indios principaes da Capitania do Espirito Santo, chamado um d’elles Arco-grande e o outro Ignacio de Azevedo com trinta indios pelo sertaó dentro obra de quatro centas legoas, em busca de seus parentes, que por fugirem dos portuguezes se ausentaram e allongaram tanto do mar. Tendo caminhado obra de cem legoas, encontráram com um christão principal, chamado Pero Luiz, que vinha já por caminho para a igreja com passante de cem almas, aos quaes os nossos indios deram aviso do caminho que haviam de tomar, para não serem salteados, e lhes foi proveitoso porque chegaram sem perigo a uma aldêa onde estava o Padre Domingos Garcia, do qual foram recebidos, e assim dos outros Indios com muita festa e alegria os outros dois principaes que tenho dito, seguirão seu caminho até acharem seus parentes em duas aldeas : dando-lhes novas do muito cuidado que os nossos padres tinham delles, e do muito zelo que procuravam a sua salvação, ensinando-lhes coisas da nossa Santa-fé ; defendendo-os das injurias e aggravos dos portuguezes, e contando-lhes outras particularidades dos padres, de. sua honesta vida e bons costumes, os moveram de maneira que se determináram a vir com elles para a igreja : e pondo alguns nisso duvida (não se fiando de todo de seus parentes pelos aggravos com que poucos mezes havia forão outros indios captivos) dizendo-lhes: ora vamos; ainda que não seja mais que para sermos escravos de taes padres, os moveu com isto a perderem o medo que tinham, e fazendo mantimentos para o caminho, e começando abalar-se adiantou Ignacio de Azevedo e partiu diante delles com quatro indios, a dar aviso ao padre como os seus vinham já por caminho e passarião de quatro centas almas, e foi tão grande a alegria e contentamento de trazer tanta gente para a igreja, que por dar tão boa nova ao padre, se arriscou a caminhar quatro centas legoas, por meio de seus contrários : fazia esta gente, que vinha, em muitas partes caminhos novos por serras e mattos bravos, e por virem assim os homens como as mulheres e meninos apé gastáram no caminho alguns seis mezes de chegarem ao mar coisa de oito jornadas, foráo avisados como uns seus contrários os estavam esperando em certa paragem do Rio Doce, em ciladas para os matarem e comerem, mas nem por isso deixaram de ir por diante, estimando mais a salvação de suas almas que as proprias vidas, e posto que foram de subito accommettidos, ajudou-nos Nosso Senhor, e deu ao seu novo exercito tanto animo e esforço que alcançaram victoria de seus inimigos, pondo-os em fugida, e matando-lhes perto de duzentas pessoas e tomando as armas dos que poderam salvar as vidas : vendo isto o Arcogrande que com elles vinha, lhes disse que pelos dezejos que traziam de vir para a igreja, os ajudára Nosso Senhor, que lhe agradecessem, pelo que ficaram animados para continuar seu caminho : sabendo deste acontecimento o padre Domingos Garcia por tres indios que de novo lhe mandaram com este recado, lhes mandou um refresco de farinha, pescado e outros mantimentos em seis canoas com quarenta homens, que chegaram a bom tempo, pela falta que já tinham do necessário, e tomando com isso forças e auxilio, chegaram em poucos dias com saude á barra do Rio Doce que dista oito legoas da aldêa, onde o padre Domingos Garcia reside, o qual os foi esperar com trezentos frecheiros afóra muitos meninos e mulheres, tres legoas da aldêa, onde fez uma cazinha para dizer missa no seguinte dia, que era do glorioso S. Miguel, em cuja manhã chegaram os índios novos por esta ordem : Vinham diante os meninos com seus arcos e frechas n’uma mão, e na outra seus bordoès, após elles se seguiam as mulheres, trazendo algumas delias os filhinhos ás costas. No terceiro logar vinham a gente de guerra, e no cabo e fim de todos, o seu principal que os regia e governava, todo empennado a seu m odo; com uma pedra verde muito fina no beiço, e sua espada no hombro: o que tanto que viu os padres se poz de joelhos diante delles e deitando-se aos seus pés com grande humiliação esteve sem poder fallar por muito espaço desta maneira; com soluços derramando lagrimas, tendo sempre abraçado o padre pelos pés, levando-o o padre e dando-lhe os parabéns de sua vinda, o levou com toda aquella gente para a igreja, com tambor e frautas, de que ficaram espantados, vendo este seu principal o como os padres o receberam e tratavam, disse-lhes : eu venho para a igreja abalado com a boa fama de vós outros, e do bom tratamento que nos fazeis, o que já comecei a experimentar, porque estando no sertão e correndo muitas terras, nunca senti em minha alma quietação como agora, depois que me determinei a vir para a igreja. Os indios antigos agasalharam aos novos com isso que levavam, e descançaram ali todos aquella noite. Ao dia seguinte muito cedo lhes fez o padre uma pratica, de que ficarão não menos consolados que espantados, dizendo uns para os outros — se este padre for ao sertão não ficará lá homem nenhum que se não venha fazer christão. Finalmente chegando ao posto onde a igreja estava com ramos e lata bem conservada, se renovaram as lagrimas da alegria, vendo o que tanto dezejavão e dizião com admiração estas palavras : com rezão se chama isto Tupaoca, que quer dizer caza de Deos.

Em companhia destes indios veio um principal de quatro aldêas, com outro companheiro, a ver se era verdade o que no sertão lhe diziáo dos Padres para que óom mais certeza podesse vir com sua gente receber o santo baptismo, e estiveram aqui seis mezès em a nossa aldêa na qual adoecendo este principal, e sendo curado pelo padre com muita diligencia, e caridade, em sarando começou a pregar pela aldêa conforme a seu costume, dizendo que os que estavam nas igrejas, não tinham necessidade de pai nem de mai, pois tudo isto tinham nos padres, e tornando-se com seu companheiro para o sertão, levou comsigo outros quatro dos que tinham vindo, para testemunhas do que passava, para com isso descer a abalar toda a sua gente e receber nossa Santa fé ; náo sao ainda vindos, mas esperamos cheguem aqui cedo.

O Padre Bastião Gomes, que reside na aldêa de S. João, na Capitania do Espirito Santo, diz n’uma carta sua feita a 6 de Outubro de 96 o seguinte :

« Há nesta Capitania do Espirito Santo (a qual dista da Bahia 120 legoas) quatro aldêas de gentios, duas para a parte do Sul e duas para o norte. Nesta de que tenho cuidado, que é a da invocação do glorioso Apostolo S. Joaõ, haverá oito centas almas christans, e como nesta Capitania se dá o algodaõ mais que nenhuma outra, quasi todos vem á igreja vestidos.

Destes christaõs se tem escolhido e examinado cento equarenta, que recebem o Santissimo Sacramento nas tres pascoas do anno comtanta quietaçaõ, modéstia e lagrimas que os portuguezes se edificam por uma parte muito de os ver e por outra se envergonham. Estes que commungaõ saõ avantajados de todos os outros assim nos bons costumes e devoçaô, como no conhecimento ejustiça das coisas da fé edoutrina christã. Todos geramente tem grande devoçaõ á agua benta, equando tem os filhos doente costumam leval-os á igreja e deitarem-lh’a na cabeça, emuitos com isto sáraõ.

Tinha um indio christaõ um crucifixo pintado em papel, indo para o sertaõ o levou comsigo, confiado que aquelle Senhor o livraria de todos os perigos e desastres, vindo por um rio abaixo de grande corrente virando-se a canôa subitamente (que é embarcaçaõ pequena de um só páo cavado) naõ somente naõ perigou e ficou salvo, mas ainda o crucifixo de papel que trazia na algibeira naõ se molhou.

Uma menina de 5 annos doente de febres, por nome Maria, foi com sua mai á igreja a pedir saude (como elles dizem) entrando por entre as grades e pondo-se de joelhos diante do altar onde estava um retábulo com a imagem da virgem nossa Senhora, fez na sua lingua esta oraçaõ : « Senhora que tendes omeu nome, dai-me saude, sare eu. » — Depois disto se foi a outro altar de S. Sebastiaõ: « Santo que tendes o nome de meu irmaõ, dai-lhe saude (porque tambem estava doente). Com esta breve oraçaõ alcançou saude para si e para seu irmaõ, e naõ lhe veio mais a febre.

Ha nesta Capitania grande porta aberta para descer indios gentios do sertaõ, como descem muitas vezes, indo-os chamar seus parentes para se fazerem christaõ; e muitos mais desceriaõ se a insaciavel cubiça dos portuguezes de os fazer escravos os naõ estorvasse e impedisse, porque muitos, duzentas, trezentas legoas pelo sertáo dentro, onde se tem acolhido o gentio, que ficáraõ das muitas guerras que os portuguezes lhes tem feito, e dizendo-lhes que os vaõ a buscar para os trazerem para a igreja, depois os repartem entre si efazem injustamente escravos : fugindo os mais dextros e valentes, vaõ dar novas aos outros dos enganos e mentiras dos portuguezes, e com isto se escandalisam muito, esquivam e endurecem, e naõ querem vir para junto dos brancos, e têm mortos portuguezes, que iam depois lá com semelhantes enganos. Isto é as continuas guerras dos brancos, e dezejos de a todos os gentios fazerem escravos, tem consumido e gastado todo o gentio, que havia ao longo destas trezentas e tantas legoas de costa do Brazil, e sendo tantos como formigas agora naõ ha nenhum, senaõ junto das fortalezas e povoaçoês dos portuguezes, algumas aldêas de indios christaõs, e se os nossos religiosos naõ tiveraõ cuidado delles, e de os emparar e defender das unhas e dentes dos brancos, já naõ houvera nenhum, e por que lhe himos ás maõs, e estorvamos, naõ captivem estes pobres indios, somos malquistos da maior parte dos portuguezes, e fazem contra nós mil capítulos.

Nosso Senhor lhes dê graça com que sigam a justiça e conheçam a verdade. Castiga Nosso Senhor estes captiveiros injustos e outros peccados do Brazil, com molestar os Portuguezes uma naçaõ de gentios que chamaõ Tapuyas, ou Aimorés, os quaes tem feito despovoar a Capitania do Porto Seguro, e vaõ por outras partes fazendo muitos dam nos, e estragos. Desta aldêa de S. Joaõ tem ido os indios christaõs em busca delles por tres vezes: onde pousavam arvoravam logo uma cruz, e antes de pelejar se punham todos de joelhos diante delia, feito isto arremettiaõ aos inimigos com tanto esforço e confiança de victoria que sempre Nosso Senhor lh’a deu, davam as frechas dos inimigos em nossos indios, e naõ os feriáo, quebravaõ em pedaços na carne, e naõ entravam dentro, mataram os nossos quarenta Tapuyas, e captivaram tres innocentes que se baptisáram depois, e estaõ já no céo. Até aqui. O padre Bastiaó Gomes.

Também no Rio de Janeiro ha esperanças de conversão e nova christandade á vista dos Maromomins, que povoam aquelle sertaõ: saõ estes indios no modo de viver e policia inferiores aos outros, estaõ divididos em vinte e tres castas differentes nos nomes, mas nâo na lingua; alguns saõ já christaõs, os demais mostram muita vontade e dezejo de o ser.

Estas saõ as esperanças que de presente temos da conversão dos gentios destas partes, para a qual uma difficuldade sómente se apresenta de importância, que é a pouca gente que, temos nesta província para taõ grande e espalhada empreza, mas como esta obra é de Deos, ainda que ao principio espante e assombre os operários com sua grandeza e vastidaõ, confiamos nella acudirá com os meios necessários, e convenientes para ter o’ effeito que dezejamos. Duas coizas temos por nós muito de estimar, e que tiram boa parte das difficuldades :

A primeira que da terra dos Carijós (que disse confinavam com o Perú) até os Pitaguares e Tupinambás, vizinhos do famoso rio dos Amazonas; todos os que vivem perto do mar usam da mesma lingua, e as praticas e doutrina que nella andam escriptas servem tambem aos Padres da Companhia que andam no Perú para ensinar os indios de Tucumaõ e Rio da Prata e d’outras terras que confinam com o Brazil.

A segunda, que em toda a costa e muitas legoas pelo sertáo dentro, corre fama entre os gentios que os Padres da nossa Companhia lhes ensinam fielmente, e lhes tratam; verdade que é grande meio, e parte do caminho para ouvirem commais gosto e respeito as coisas da nossa Santa fé e doutrina christâ.

Da Bahia i de Maio de 1697 (aliás 1597).


Notas da edição original

Impressão de msc. da Bibliotheca Nacional.

Na respectiva secção existem duas cópias : — uma de 1874, in-fol. de 9 ft. num . escriptas de ambos os lados e medindo 0,”’29 X 0,m185, no cod. sob n. 12, que figura no Catalogo dos Manuscriptos (n. 9, pp. 38-39 do Tomo I), e no Catalogo da Exposição de Historia do Brazil (n. 9.157, pp. 788) ; — e outra tirada posteriormente pela primeira, in-fol. de 17 ff. num. escriptas só peto anverso e medindo 0,m285 X 0,“ 181 no Cod. 24_|2 sob n. 13. — Pela segunda se fez a presente impressão. A primeira foi tirada por outra pertencente ao Instituto Historico e Geographico Brasileiro e está authenticada pelo ex-Bibliothecario o Snr. Dr. Benjam in Franklin Ramiz Galvão com a data de 27 de Outubro de 1874.
Em ambas as cópias encontram-se os erros de data : 1696 e 1697, em vez de 1596 e 1597 ; esses erros certamente vem da cópia primitiva, e não póde haver a menor dúvida na rectificação, pois os proprios factos narrados justificam as erratas.

 

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